segunda-feira, 3 de agosto de 2009

A gente é e não é - Postagem Temática

Você não fuja da minha história, desejo que saiba a causa deu ter feito isso. Não, não levante da cadeira, trate de se sentar, não quero esse medo escancarado no rosto do homem da cidade. O que vão pensar de mim lá no seu jornal? Mas chega de trela-trela. O que se sucede é que o que houve não era algo planejado; e nem foi pensado em última hora. Simplesmente aconteceu, tal qual o cavalo aprende a estancar de pé, a galopear e depois sai andando pelo campo afora. Até encontrar uma portera fechada, daí, só daí, ele se acalma.. A gente é e não é.

Veja bem, sei que o moço não está acostumado a essas nossas cidades pequenas, mas saiba: elas também não me iludem em mais nada. Há algo de podre em ares interioranos. Existe muito assunto escondido por baixo de uma família. Mas sempre há uma mulher tentando organizar as coisas, há de concordar. Sempre. E, desculpe perguntar, mas há alguma mulher na sua vida agora? Claro, o sorriso escondido prova que sim. Deve ser importante; mas digo, as importâncias podem variar muito. Uma hora é sim e outra é não. Tudo muda, sabe. A gente é e não é - e nunca sabe; mas veja quando isso desatinou de ocorrer eu ainda não entendia bem os sentimentos. Era jovem por demasiado, e quando a gente é jovem fica cego por qualquer mínima coisa. Por saia curta, por risada feliz, por estado que não existe. Demorei anos para entender que a cabeça é que comanda a existência. Pensamento controla pensamento – algo muito complicado, só o tempo trata de ensinar.

Mas não quero perder a linha narrativa, veja bem; só direi o nome dela uma vez, faz anos que não menciono, e prefiro falar assim de prontidão: Claúdia. Com a tônica no u mesmo. E pronto. Essa é a mulher da história. Agora, há muito tempo, nós tínhamos aqui na comunidade um pequeno festival que se realizava perto do final da primavera, da data eu não me recordo com exatidão. Pelo final de setembro, talvez o último sábado do mês. Nele consistia a comemoração da entrada da chuva. E até hoje não sei a razão certa do porquê, mas era tradição as mulheres usarem máscaras que elas mesmas tratavam de fazer.

Era muito bonito de se ver quando todas chegavam juntas à noite, cada uma mais diferente que outra, cada uma tentando brilhar mais forte, sabe. Aposto que não se vê uma coisa dessas na cidade grande. Veja, Cla...ela costumava participar todo bendito ano. Era a sua época mais feliz dos 12 meses, alguma coisa irradiava daquela mulher que não se via em qualquer outro momento. E, deus, ela trabalhava duro naquela máscara, queria sempre ser a que mais prendesse atenção, a que brilhasse no meio daquelas todas mulheres.

É a mesma ideia do cavalo, quando começa a correr: espera ser observado, olhado, vigiado, conquistado... Aquela sua felicidade ano após ano parecia só aumentar....de quem ela queria chamar a atenção? Havia algum vizinho nosso em que ela pousava os olhos com mais apreço?

Viste?

Era assim que meus olhos pensavam. Era assim que meu pensamento cavalgava. Mas, mas veja...se eu pudesse voltar atrás...Besteira. Ninguém pode voltar atrás, não é? E provavelmente, eu não faria nada de diferente. Seria o mesmo, com o mesmo pensamento do tempo.

Mas a quem ela queria chamar a atenção?

Nas últimas semanas que antecederam o dia do festival, era só nisso que ela falava, comprava tintas de várias cores diferentes, precisava ver, tecidos, purpurinas, e todas aquelas coisas que mulheres sabem bem o que é. Estava mais empolgado do que qualquer outro ano. Alguma coisa em mim odiava aquilo nela. Eu pagava tudo. Ela dizia obrigado e, mal e parcamente, falava comigo. Descia as escadas e se trancava sempre no porão e ficava lá por horas trabalhando em sua confecção. Não sei quantas máscaras ela deve ter feito. Eu já não mais sabia o que fazer.

Na minha cabeça era eu quem ela devia servir, você me compreende? Eram os meus motivos, as minhas razões, era em mim que ela deveria pensar enquanto fizesse a maldita máscara, você vê. A gente é e não é. A juventude humana...eu nunca vi animal mais imbecil. É por isso que comecei a gostar mais de cavalos. Eles simplesmente correm por impulso, não por egoísmo.

Perguntei para nossos empregados, se haviam visto alguma movimentação estranha. Se quando eu ia trabalhar, ela inventava de sair, ou alguém ia visitá-la escondida. Eles relutaram em responder na hora, eram três ou quatro bons serventes, mas gente sem nenhuma ou pouca educação. Insisti mais vezes, berrando com eles, quando o mais novo resolveu falar.

Era um moreno baixinho, me lembro ainda do seu rosto, a expressão de medo quando me disse que achava estranho o alfaiate da cidade vir tantas vezes na semana que passou, sempre trazendo um daqueles homens de madeira e deixando no porão. Ao passo que minha esposa não saia do local nem para recebê-lo, nem para adiá-lo. Instantaneamente procurei o tal do alfaiate, cheguei com o pé em sua porta e com o pé o derrubei também. É verdade. Agora você não dê nada por mim, mas na minha mocidade...não tinha um que me encarasse de força igual.

Quanto ao alfaiate, é claro que ele negou qualquer envolvimento, mas não escapou de algumas bordeadas. Com o rosto inchado as pessoas falam mais fácil às verdades. Descobri apenas o que eu já sabia, vários bonecos de madeira em formato de homens foram levados para o meu porão. Décio, o alfaiate, não sabia o porquê. Só sabia que ia ser pago e para ele era o suficiente. Homem regulado Décio era: às vezes é bom não saber o que as pessoas escondem.

Quanto a mim, eu sempre quis saber o que as pessoas escondiam. Principalmente se fazia referência a minha mulher. Foi então que resolvi invadir o porão e deparei-me com horrenda cena: ela nua, deitada no chão vestindo apenas uma máscara; vermelha, cobrindo os olhos, cheia de purpurina. Os bonecos em volta, todos vestidos como se estivessem numa festa, como se fossem ao festival. Você faz essa cara? Imagine a minha na hora.

Comecei a gritar coisas sem sentido para ela, ao mesmo tempo em que ela levantava do chão também berrando frases que ficaram anos batendo e voltando entre os meus ouvidos: ‘Agora é assim que eu vou viver! Eu também posso ser livre! Esta vendo essa máscara? É quem eu sou de verdade!’. Agora veja, o que eu poderia fazer? Eu estava descontrolado.

Lembras-se da metáfora do cavalo? Eu simplesmente corria. Todos aqueles bonecos a minha volta. Ela nua a minha frente, histérica. O que me lembro é de ela rolando a escada que levava até o porão e caindo, ficando estática para sempre. Foi essa a minha porteira. E ela continuava com a máscara. A gente é e não é. Mas não, não se afaste de mim assim, agora você sabe, eu também mudei.

Sugestão: Despedida.

6 comentários:

Mariana S. disse...

...Não, não levante da cadeira, trate de se sentar...
Valeu a pena "ficar sentada" e "ouvir" a história até o fim!

Belo texto, de uma profundidade invejável.
Com certeza, vou ler várias vezes!

beijo.

L E O disse...

Dá gosto de ler quando o cara que escreve realmente sabe escrever.

Tens talento.
O texto tem a maturidade de um escritor bem mais experiente. Interpretas, com propriedade, um personagem, que já viveu mais do que 20 anos, tem experiência e histórias pra contar; personagem de tal forma descrito, que eu consigo vê-lo contando a história, e por isso, permaneci sentando e ouvindo até o fim.

Muito bom, cara!
Parabéns!

Leila Ghiorzi disse...

Nem preciso dizer que adoro os teus textos, né?

Só achei meio parecido com Grande Sertão: Veredas, no estilo narrativo. Mas isso não é ruim.

Não consegui visualizar muito bem o perfil do narrador, mas talvez o problema seja comigo (não estoumt ligada essa hora da manhã, huahauhau).

Adorei a expressão "a gente é e não é". Vou usá-la sempre!
Beijo

gregtest disse...

Entre as capacidades que um autor pode ter, aquela que sempre mais me impressionou na literatura foi a capacidade de se colocar no lugar de outra pessoa, de assumir a consciência alheia. Nenhuma outra capacidade, seja a de descrever, a de criar bons diálogos ou de criar bons enredos, me impressiona tanto quanto essa capacidade de interpretar. E neste texto tu conseguiu me impressionar neste quesito, ficou realmente muito bom, parabéns.

Leo Cardoso disse...

A minha admiração pelo teu texto se une a uma ponta de inveja. Boa, é claro. Sempre quis escrever assim. Sair de mim e criar uma história. Nunca consegui. Admiro quem consegue. Acho que a galera em cima mencionou tudo. Parabéns Rafa, belo conto! Eu fui ator por muito tempo quando piá, se algum dia pensares em escrever para o palco, eu to dentro viu?
Mas agora me permita comentar a parte que mais me identifiquei: "Besteira. Ninguém pode voltar atrás, não é? E provavelmente, eu não faria nada de diferente. Seria o mesmo, com o mesmo pensamento do tempo." Falaste TUDO, na minha opinião. Me vi naquele momento, pensando exatamente isso. Por que eu penso nisso muitas vezes.
Abraço

Pam disse...

oh, céus!
eu li os comentários.. o que mais eu posso falar?
vou me repetir então, pq me calar não é muito o meu feitio..
o texto está esplêndido..
consegui enxergar o personagem.. seu jeito de falar.. consegui ser empática a ele e também a mulher..
o mistério envolvendo tudo.. a coisa mal explicada.. q fica no ar.. nos incentivando a ir mais fundo, a ler as entrelinhas..
a ouvir a máscara e os bonecos..
mto bom rafa!!
tu tem um talento incrível!

bjão!