sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Esquina para dois

Vejo-a, novamente, entre tantas pessoas,
é escandalosa e impertinente
(costumava subir em meus ouvidos e
me desafiar com as maiores  baixarias)

Agora suspira, melindrosa, descansando
no meio de tantos corpos da rua;

Não me reconhece ou apenas faz-me crer que não.

A despeito continua sem jeito em tratamento.
Sempre teve receio de se enturmar,
exibida, dizia que precisava relaxar

Arrumava amor novo a cada fim de semana e
eles só queriam o que ela podia dar.
Desse jeito ela navegou
até se machucar.

Entre tantos corpos cantando na rua,
só eu a vi chegar, esquecida
envolta, carregada de feridas.

Eu apenas deixei ela passar,
Decidida ou não sei

Aonde você quer estar?

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

27 da noite

Enquanto converso
já é quase 27
da noite.

Há anos, lia-se o Conhecer
em colo da vó
para menos temer
o primeiro dia escolar.

Dorme e já é quase o Médio,
com primeiro beijo sob a lua
no quarto em construção.

Mãos suas, mãos suadas.

Quatro dias de provas
para tentar passar a vida escrevendo.
Mas escrever o quê? Para quem? Quando? Como? Onde?

Por quê?

A gente escolheu se enrolar em nós,
quando a vida segue fluxo de riso,
engatinhando para todos os lados
de várias bocas.

Veio você, você, você, você e você.

Ficaram glórias e tragédias impressas
em jornal.
E o quase nada do Rosa
ainda navegando .

A gente dança entre tragos e estragos.
Vou me mexer até não aguentar mais na cama.

Já é quase fim de noite e o 27 acompanha.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Carentia

Não que nada vá ficar
dela em mim:
Só essa carência
impetuosa, nojenta.

O medo de perder
que te fez ver várias outras
pernas;
abraçar vários outros
corpos;
deitar com tantos
no escuro.

Esquecer é a resposta
para tanto desencanto.

A gente anda é morrendo,
enquanto devaneios.

Um ao outro despistando
os próprios rodeios. 

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Ninguém vai lembrar – 04

O amigo pode não acreditar, mas é a pura verdade: não há nada mais fiel nesse mundo que um cachorro. É claro que recordo como o Faísca entrou na minha vida, mas o que eu quero mesmo é contar como ele saiu. E, para isso, vou ter que pular alguns punhados de anos. Contar é isso também, não? Posso ir e voltar a hora que eu achar melhor. De acordo? Às vezes quando vou dormir tarde da noite, beirando às duas da manhã, quase que posso sentir o ronco do velho Faísca deitado ao pé da cama, me ajudando a vencer as noites sem sono. Não sou bom em descrições, mas é difícil esquecer um amigo como ele. De porte médio, o pelo raso e claro, Faísca virou Faísca, porque corria muito: ardia os olhos quando ele se metia a sumir atrás de um daqueles pássaros do campo. Mesmo depois de velho ele ainda podia subir um monte mais rápido que eu. Faísca. Faísca durou uns 15 anos, ou melhor, viveu, porque animal não dura, permanece, vive.  Você sabia que os cachorros podem ter as mesmas doenças que os homens têm? Na época, eu não tinha muita ideia que cachorro também podia ter câncer, ataque do coração; não, achava que cachorro tinha doença de cachorro. Quer ver Faísca era mais homem que muito homem por aí...Não sei, mas sabia que havia algo errado, quando ele começou a ficar quieto, apenas em cantos de casa, quase não me acompanhava mais em meus passeios diários pela propriedade. Faísca, velho Faísca, por onde anda. Visitamos um médico de animal que recentemente tinha se mudado e ele diagnosticou câncer, mas como podia ser câncer se essa praga só dava em ser humano. E ainda era um câncer que já tinha espalhado, pelas patas, pelo fígado...Não haveria muitos dias, mas ainda haveria muita dor, me contou. Enquanto Faísca me olhava quieto e eu olhava para Faísca, já em casa, eu tive a sensação de que só eu iria lembrar do Faísca e ninguém mais. Mal se lembram de familiar depois que morre, imagina de um cachorro. Ninguém vai lembrar. Resolvi, então, aliviar o velho Faísca que já chorava de dor até dormir. Escuta bem, porque nunca mais vou contar isso: peguei no colo e parece que ele já sabia, de certa forma, pois me olhava com os olhos bem maiores que o de costume, olhos de quando era filhote e voava pelo pátio. Caminhamos até o horizonte da minha propriedade que dava em uma grama rasa que ele costumava comer quando jovem e dormir quando mais velho. Depositei-o ali e puxei o revólver que sempre carregava comigo. Naquela época, não haviam os tais remédios para aliviar a dor, o que mais eu poderia fazer, o que mais. Nunca mais esqueci aqueles olhos antes de atirar entre eles, antes de não mais emitirem nada. Não eram olhos de súplica, eram de afeto, carinho. Olhos que eu nunca esqueci e que agora, espero, você também não.