domingo, 16 de fevereiro de 2014

Um ano e pouco acostumados

Fez um ano e pouco
da última vez.

O mundo gira
e fica diferente
mês a mês.

A gente mede distâncias
conforme o mandato.

Fez um ano e pouco,
da última quarta-feira
e do último sábado.

Um ano e pouco acostumados.

O pássaro como está?
Acuado, no canto
ou liberto, voando.

Para sempre ele canta, entretanto.

Entre atos,
entre casos,
entre falsos abraços.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Ato III – Acordar

Despertou depois de quase três meses dormindo. Sonhou com tanta coisa e teve diversas vidas – em uma delas, inclusive, chegando a idade de oitenta anos, com vários netos; em uma morreu ainda muito jovem: acidente de carro;  outra acabou se casando com a namorada do colégio e tudo era horrível. Mesmo vivendo tanto em quase três meses de sonho acordou sem querer, quando caiu em um buraco e sentiu aquela horrível sensação de perder o degrau da escada. De sucumbir para o infinito, que durou até o momento que conseguiu abrir os olhos e aparecer na sua cama. 

Estava ensopado, o calor de mais de 40 graus acentuava como os dias mudaram desde que ele simplesmente apagou depois de voltar do trabalho. O colchão fedia a merda e mijo e o quarto era só mofo escuro, pouca luz entrava pela cortina semiaberta. Pensava em ver as horas, mas tinha esquecido de como ver as horas. Só conseguia sentir o cheiro de merda e isso o lembrava dos porcos que criou quando criança na fazenda de seu tio, mas não sabe se era realmente sua vida ou um dos sonhos.

Tentou se arrastar para rasgar a cortina e sentir os olhos, mas os seus membros não respondiam a nada, ficou ainda um bom tempo deitado. Ficou ainda um tempo tentando se lembrar como era ser ele, como era seu nome e sua identidade. Os pensamentos ficaram no ar e o ajudaram a levantar, empurrando-o da cama, jogando-o no chão e forçando a se arrastar pelo carpete cheio de pó até a cortina. Depois de muito esforço, conseguiu rasgar um pedaço dela e pode ver a luz invadindo o quarto, pintando a parede com uma cor amarela nauseante. Começou enfim a enxergar algumas pessoas, sua esposa, seus netos, um cachorro que tinha adotado, sua irmã andando de bicicleta.

Quanto mais rasgava a cortina, mais clara suas várias memórias ficavam. Foi aos poucos se levantando, pronto para encarar o banheiro e o trabalho, precisava, enfim, ficar limpo, precisava enfim, voltar a viver alguma coisa – mesmo não sabendo exatamente o quê, ou para quem.