segunda-feira, 28 de abril de 2008

Obstáculo 4

É o silêncio que me incomoda. Simbolizado pelo fato de eu não conseguir dizer as coisas (tudo mesmo, o medo mais enrustido, a verdade mais crua) e por meio do jeito como nossas expressões estão cada vez mais cansadas. Desaparecidas nesse universo, por entre cada pedaço de confusão mantida inerte sob o nosso corpo. A droga de árvore genética da quietude. Meu vô quieto , meu pai quieto, meu filho quieto. Nunca esquecerei os olhares para mim, aqueles que surgem quando devo as palavras – e me falta o ar para relatá-las. É o silêncio que me incomoda...........................................................................................................................................................
...........................................................................................................É o silêncio que me incomoda................................................................... E meio vazio ainda, assim por só, vou me definindo sagrado entre tantos próprios, ancorado nessa canção que um dia foi de nós muito mais que o vazio, muito mais que.......... (e o resto é silêncio).

sábado, 26 de abril de 2008

sadismo

“ela me cobrou cinqüenta reais”, soltou evandro para paulo durante um bate papo descompromissado no elevador. “cinqüenta reais, a vagabunda, esse deveria ser o seu apelido, cinquentinha, cíntia cinquentinha”. paulo só ria, puro sorriso amarelo, quieto no canto, desejando que o elevador tivesse uns 100 metros quadrados de área. mas não. tinha que se contentar com o quase metro que o separava do conhecido. “que putinha, cara, que putinha, mas cobrar cinqüenta reais, a bagaceira não tem gabarito, a bagaceira não tinha gabarito...” , soltando tudo para fora. metido no seu terno engomadinho, a gravata preta, o óculos falso sério, evandro era um sádico. paulo era quieto. e só ouvia. até o décimo sétimo andar. “olha só vou te contar, cara, vou te contar tudo, foi bem assim..”, enquanto ele arrotava as palavras, paulo procurava não as entender, queria fugir na próxima parada, descer com a vertigem. porém, sabia que era perseguido, rastreado pelo colega, que, apesar de tudo, tinha o dom de colocar as palavras nos lugares certos. “morena, lisa, uma bunda, ahhhhhhhhh, cara, sem noção, mas não tinha gabarito de cobrar cinquentinha, ah, cíntia cinquentinha, cíntia cinquentinha!”. por azar de paulo, os dois encontravam-se sozinhos num elevador de capacidade de 600 quilos. pelo menos não passaria vergonha pública. evandro gesticulava, fazia poses, abria as mãos, brincava, o elevador era um grande palco, no qual ensaiava seu monólogo. faltando quatro andares para o fim do martírio, a porta resolveu se abrir, e o show foi interrompido por duas belas pernas. morena de sol, de saia curta e despreocupada. evandro agora parecia imitar paulo, ficando mudo também. quieto. os dois eram platéia, apreciando o espetáculo. em pleno silêncio. ela desceu logo em seguida, levando a quietude com ela. houve alguns segundos de marasmo entre os dois ainda, paulo já estava para descer, quando evandro o segurou forte pelo ombro, e perguntou com o conhecido sorriso sádico no rosto: e essa, quanto será que cobra?

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Graciliano Ramos, em entrevista concedida em 1948

"Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar.Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer."

sábado, 19 de abril de 2008

Somos todos Verdes?

Basta uma pequena caminhada pelo centro de Porto Alegre para verificarmos os índios espalhados pelo concreto da cidade - tão reacionária obesa e factual. Atirados nos cantos das calçadas, sujos, atrasados e excluídos por uma divergência história de muitos anos e de muitos níveis sociais. O correto era sermos todos verdes, não? Prezar pela cultura dos povos que formaram nosso país, que a enriqueceram, moldando e tornando-nos mais bonitos também. Acabamos manchando a pura cor da folha brasileira com o vermelho mais covarde que pode existir – e que de certa forma circula em nossos corpos. Mas o verde também representa a eterna esperança, estampada nos jovens rostos índios que observo pela cidade. Eu só as vejo correndo de um lado para o outro, as crianças parecem felizes, morenas de cabelos lisos pretos, mais jovens que a minha irmã, ainda sorriem, mesmo com a cor vermelha as rodeando, mesmo com todo o concreto abafando o verde.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Mas é diferente agora que eu estou pobre e velho

Já imagino a cena: daqui a vinte anos estarei sentado na sala assistindo a um programa de esportes no computador-televisão, e meu filho entrará em cena – talvez tele transportado por uma possível beleza tecnológica –, perguntando: “paiiii, quem é esse tal de Guga?”. E eu responderei no ato, vivamente: “é o melhor jogador de tênis que o nosso país já teve, eu o vi jogar, ahhhh, aquela época que era tão boa”, e então iniciarei uma maratona nostálgica com a recordação da minha adolescência, do cursinho, da faculdade, do primeiro dia de trabalho, da festa, das amizades perdidas, das mulheres. E repetirei comigo mesmo, “que época boa”. É uma premonição anunciada do que – provavelmente – acontecerá, e eu tenho tanto medo. Porque não consigo me ver, só posso dizer o que pensarei, mas não como serei. Talvez porque o futuro não exista de certa forma, porque todos nós somos presentes. Logo, vou ser eu mesmo agora que estará daqui vinte anos e lembrará do passado, e recordará também que previ isso. É um igual totalmente diferente, a consciência alternada e modificada sempre olhando para trás, aproveitando o presente e aguardando, ou construindo, o futuro. Mesmo pobre. E velho.

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Eu nunca vou saber

“Ela não fala a mesma língua que eu” grita Raquel, enquanto bate na cama, bravamente. Depois olha para o seu cachorro ao lado da escrivaninha no quarto, quieto e de orelha abaixada, marrom, sincero, sempre sozinho. Talvez todos nós sejamos assim. Ao invés de continuar o espancamento imbecil contra seu leito, agora faz carinho no colchão, depositando o seu corpo inconformado na cama. Família é tão estranha, ainda mais para uma adolescente idiota de quinze anos. O cãozinho esfrega-se nos seus pés pequenos soltos, gravitando imerso no ar, para baixo, tudo para baixo. Segura o travesseiro meio grande demais, conformado demais, chora demais. Mas passa rápido, xinga a mãe com toda a raiva que guarda, depois explode de calma, vira brisa por aí, quase um sereno enxaguando as lágrimas no lençol. Chegada a calmaria, afana o cachorro com a mão, esfregando o focinho, depois desliza pelo seu pêlo cansado, calmo, reto e coeso. Ele chora feliz, solta a pata, vibrando o rabinho, iluminando o terreno do quarto. Seu terreno, o terreno dela. De repente ela se levanta em paz, séria, pega o seu batom vermelho, da terceira gaveta da escrivaninha e anda até o espelho, no qual se arruma todo dia antes de sair, e atira: “eles nunca vão entender nada”.

terça-feira, 8 de abril de 2008

"O horário é que nunca combina"

Todo mundo culpa o tempo. Coitado. Ele não tem responsabilidade dos nossos erros, das nossas incapacidades em resolver problemas. Dos afogamentos próprios. Eu sei que acabo comigo e tenho plena consciência dos meus atos, das minhas faltas de minutos, do correr das horas, dos passos apertados e raramente calmos. Talvez seja a modernidade, a vida adulta – por mais clichê que isso soe – mas as coisas (tudo, o gerúndio, a morte, a planta no chão, o asfalto) têm o seu caminho, a sua passagem. E a nossa função nesse dilúvio de situações é encontrar os raros momentos de reflexão. Suprir-se das pequenas coisas, as que ficam nas entrelinhas, as que permanecem sorrateiramente nos cantos. Todas elas pairam pelo ar, esperando ser captadas por nossos pensamentos coletores, que também voam por aí avoados vivos vidrados. Esperando se encontrarem, para dessa forma se completar, criando uma nova sensação, um modo puro, abrupto, sensível e, principalmente, tangível de se ver as coisas. Como se ligássemos a câmera lenta na vida.