domingo, 27 de abril de 2014

Emaranhados



Três e meia da tarde quando eu cheguei. Vou pegar a cadeira para sentar mais perto. Tudo bem? Tudo, tudo bem. As pernas e os braços finos. Tão pequena, igual a uma criança. Tão cheia de furos de agulhas, soro, exames. Esse aqui foi para ver como tá a glicose, a enfermeira havia dito para ela, que disse para mim apontando para o furo mais novo no dedo. Só nós dois naquele quarto branco e gelado, lá fora estava quente e eu segurava um casaco - eu sempre ando com um. Bota que tá frio. Rejeitei a ideia com a cabeça, mas me cobri ao sentar.

Essa colcha, vó, que colcha bonita. Já é antiga, né, foi tu que costurou tudo, eu me lembro. Nossa, deve ter demorado muito tempo para fazer. E ela fez uma para cada parte da família naquela época. Eu ganhava muito material de linha, mas para emaranhar assim com tanta cor...Hoje em dia não dá mais, o braço não deixa. E sorri de verdade, que é quando se sorri por coisa boa já feita. Que é quando se sorri respingando um pouco de tristeza doída porque não vai se repetir. Queria ter um talento assim, vó, mas eu quase nem sei fazer nada direito, uma colcha dessas, imagina, nem conseguir cozinhar, eu sei. Já a senhora....Eu nunca a havia chamado de senhora, me estranhei, então virei o rosto por um momento, procurando  um tímido abrigo.

Ela abana a cabeça, os olhos pulando, os olhos cansados. Não precisa falar mais vó. Descansa, dorme um pouco. E depois vai comer pra ficar forte e sair logo daqui, né. Nem me fala, filho, nem me fala. Gosta de me chamar de filho e eu, que fui criado praticamente minha vida toda perto deles, sempre acatei com maior profundidade. Vamos ficar quietos, tenta dormir, enquanto eu fico aqui do seu lado. Tira um cochilo. E os olhos fecham.

Os meus abrem mais: consigo agora observar melhor o seu estado. O corpo que se confunde com o cobertor. Retalhos de peças de linha das mais variadas cores feitas manualmente ao longo de tanto tempo; uma pessoa composta por todas essas memórias, uma pessoa toda remendada de novo, indo e vindo do hospital. Cansada e forte. E eu, disposto e fraco, o mais vulnerável da história; não consigo compreender como o tempo pode fazer isso com a gente. O que se pode fazer? Mas a colcha é tão bonita que eu nem sei mais de nada, e parece formar ondas e camadas diferentes ao se escancarar toda sobre o seu corpo. Depois de uns dez minutos ela acorda com um sonho. Quer me contar. Colorido e cheio de vida como essa colcha, deve ser. Acontece que é simples. Estou em casa, andando, cuidando das coisas, tomando banho por mim mesma, sem barulho de máquina a noite toda. É igual a vida. 


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terça-feira, 15 de abril de 2014

Deixa

Deixa eu imaginar a cena. Você está indo embora, descendo a Salgado Filho. Tá chovendo um pouco, bem pouco, mas você gosta de chuva então nem se importa. A sua roupa também não é lá grande coisa, então dá para molhar a vontade. Você está triste, você vai viajar. Você está feliz, você vai viajar. Como posso descrever essa parte? Você quer olhar para trás, mas não vai olhar para trás, porque falou que não iria olhar para trás. Ele também disse que não olharia para trás, mas ele olhou para trás, porque é uma das coisas que ele sabe fazer bem. Ao contrario de você, ele estava com um guarda-chuva, embora odeie carregá-lo. Ao contrário de você, ele não iria viajar e estava todo arrumado para o trabalho. Atrasado? Pouco importa. Só daqui a um semestre tudo voltaria à normalidade, ou talvez não. Deixa eu escrever a cena. 

domingo, 6 de abril de 2014

Manhãs de abril

É como deitar em uma rede no meio da tarde e perceber devagarzinho o vento que parece que alguém que você gosta muito soprou diretamente no seu rosto. E daí, meu amigo, daí, meu amigo, meu amigo, não tem nada ou ninguém nesse mundo comparado a esse tenro momento, talvez só apenas aquelas situações que guardamos na memória como um beijo debaixo das estrelas, um amor fadado ao fracasso que continuamos tentando que dê certo, a felicidade do orgasmo parelho. Mas são poucas coisas, poucas coisas que são tão agradáveis quanto uma manhã de abril fria, uma manhã de abril fria em que se caminha debaixo daquele sol desprotegido e que vagarosamente nos abraça, como se estivesse com pena de nós; e a estrela maior também fica resguardada quando recebe essas manhãs lindas e soberbas de abril e de outono. Se até o sol rei sucumbiu quem somos todos nós para não pregar devoção a essa paisagem tão viva e tão cansada, tão fria e perspicaz, tão calcada na ideia de que o tempo está passando. As manhãs de abril existem para nos lembrar que tudo passou e nós ainda não vivemos o suficiente.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

De se ver

Gosto quando 
ela
tira os sapatos, cansada
e sente os pés  
a primeira vez no dia

E não se importando
beija
o meu rosto em cada
pedaço, o tempo é rés
para nossa mania

Nem até reclamando
perde
encanto ou fica desalmada
sempre disso, ao invés, 
tem amor em demasia