quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Essas coisas que acontecem - 03

Acho que o amigo da cidade grande nunca viu direito, mas aqui em Nero a gente sempre conseguiu ver muito bem, ainda mais naquela época em que não tinha tanto prédio alto, tanta gente, tanta indústria e tanta máquina como tem agora. Pensando bem, parece até que era outro mundo, pensando bem parece até que foi em outra vida, mas quando se olha para trás sempre se parece tanta coisa…Bom, não era isso que queria comentar; naquele tempo a gente conseguia muito bem ver o céu à noite, e ver as estrelas como se fossem um grande mapa aberto à nossa frente, todas piscando, todas ilustradas por demais...Era um espetáculo, diria que o maior espetáculo da cidade. A gente foi morar com Seu Adão e a casa dele pousava no maior morro de Nero na época, e juro que é verdade o que vou falar, era tão alto que me lembro que as estrelas ficavam mais perto do que lá embaixo, na outra parte da cidade. Tenho essa lembrança bem incrustada na memória, metida em algum canto principal da minha cabeça. Era noite, uma das primeiras noites que fiquei acordado até tarde, já não era tão criança, já fazia vários afazeres e me lembro de não conseguir dormir porque o brilho das estrelas era tão forte que entrava no meu quarto, e eu tinha que levantar para fechar a cortina. É verdade; é como era e não como é mais. Seu Adão, que eu nunca consegui chamar de pai, mas que me tratava como um, acho eu, gostava de ficar admirando as constelações, desenhando algumas, brincando de confeccionar as próprias. Foi aí que ele tentou me instruir naquela nomenclatura que no começo achei fascinante por ser tão diferente, Andromeda, Circinus, lembro de algumas, mas o tempo apagou o resto. O tempo é que nunca acabou o que vem agora: um dia daqueles eu estava em meu quarto, quando escutei um barulho lá embaixo no pátio. Era o Seu Adão com a usual parafernalha, visualizando as constelações. Ele me chama, faceiro. Pede para eu descer rapidamente, porque era algo importante o que ele tinha acabado de fazer, pelo jeito. Chegando lá, disse que tinha sinalizado e pontuado a constelação mais bonita, criada a partir da disposição e da justaposição das estrelas de diferentes constelações. Eu apontei o dedo para o céu, tentando entender, quando ele me disse que o nome da constelação levava o nome da sua filha, que ele não via há tempo, mas que estava para chegar e eu nem sabia que existia: Inara. Logo depois me deu um tapa na mão e falou para eu não apontar para as estrelas que dava verruga, eu nunca mais fiz isso, mas se alguma coisa ficou em mim naquele dia foi a lembrança de ter ouvido aquele nome, que soava tão bem, pela primeira vez.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Analógico

O corpo é assim
Bate aqui
Sobe lá

Quebra embaixo,
Melhora em cima

Nunca está inteiro
Nem pode estar

Cresce a hérnia,
Diminui o coração

Diminui a úlcera
Cresce o tempo

É melhor, por via das dúvidas,
Bailar a mão
Socar o pé

E dosar o olhar
Na medida certa do que vai acontecer
Porque se
Se
Se permitir
Não tem como controlar
O que vir


segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Todo mundo tem algo escondido - 02

Assim seja então. Começar pelo começo, que é por onde tudo se ajeita. Mas por onde é o começo mesmo? Depende. Depende do que o amigo quer saber...Ou melhor, depende do que eu quero contar. Meu começo vai ser quando eu pisei em Nero a primeira vez, nessa cidade, que nem era uma cidade ainda, mas um amontoado de casas, um amontoado com bastante espaço livre, um amontoado de montes...A gente era criança e veio arrastado porque não tinha mais lugar para viver aonde a gente vivia antes. Nem vale a pena explicar. A gente? Minha mãe e eu. Não se acometeu de conhecer meu pai, só a sua reputação...Todo mundo tem algo escondido, e a estimada, que agora está descansando em paz, nunca quis me contar. Mais tarde, muito mais tarde, acabei descobrindo por mim mesmo dos seus feitos. Era então crucial ter ido embora, aquele dia eu entendi.  Mas na época eu não entendia é nada, na época eu nem lembro do que me importava. Gostava de correr naqueles pátios grandes. Gostava de ouvir a voz da mãezinha que me fazia dormir assim que o sol baixasse. A coitada passava o dia todo na casa do seu Adão, trabalhava tanto lá como dona de casa, limpando, cozinhando, organizando, ordenhando, costurando. Que de tanto ando, acabou mesmo é se doando pra ele. Meses depois tavam se ajuntando de vez, mais pela convenção, talvez. Mais para ocupar o lugar vazio que a viuvez deixou para o tio Adão, que ainda era moço para assuntos do coração e da casa. O estranho, que por mais que pareça, é que  foi assim que comecei a me enraizar em Nero, que nem era Nero ainda, mas já era Monte, porque nasceu assim. E o mais estranho é que foi assim que meu caminho de vez começou a tropeçar em Inara, que, veja só, eu nem nunca tinha visto, nem sabia que existia, e tudo que eu tenho também é por causa dela... Mas ela não é assunto, não pra agora, não pra agora. O amigo precisa entender que tem hora pra tudo nessa vida, e há hora dentro das coisas que a gente conta também, há hora dentro das frases, hora e tempo por meio das palavras. Eu sei sobre o tempo, eu sei como tempo demora, você pode acreditar em mim. 

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Monte Nero - 01

Quando eu cheguei na cidade, eu era muito novo. Não lembro em que ano foi, e os arquivos, com certeza, não contêm essa informação. Eu era muito novo e muito sem instrução, para o colega ver. Mas eu não cheguei sozinho, não. Minha mãe, já falecida, é que me trouxe, sei que era verão, talvez fevereiro. Muito sol na cabeça, essa é uma das minhas primeiras recordações, o mal estar do calor, os mosquitos, o suor escorrendo. Naquela época eu não estava interessado em quase nada também. Se não fosse Inara, eu nem nada faria. Estava bom para mim como estava, quer saber. E se tivesse ficado estando assim, eu estandaria vivendo daquele modo para sempre. Mas aí, ô colega não iria querer tirar umas palavras de mim, e eu não viveria do modo como vivo hoje. Graças a alguma força maior, e talvez a Inara, eu não preciso da ajuda de ninguém pra me manter, ao contrário, se eu perdesse boa parte do que tenho, poderia viver muito bem por muitos anos, sem me mexer. É o que me interessa só, viver o que resta sem maiores incomodações, que eu já me incomodei deveras muito demasiado nessa vida. Se o senhor soubesse tiraria essa cara do riso na hora...Ahn..Por acaso o senhor que saber? Saber é ruim, saber só leva a mais incomodações, saber só leva a querer saber mais e saber mais e saber mais... Conhecer pra quê. Eu não quero mais é conhecer nada, eu não quero mais é saber de ninguém. Encosta esse bloco para lá, tira essa geringonça daqui. Não me interessa compartilhar o tanto que eu já fiz. Os outros querem saber o quê? Só falar já é burocratizar o infinito por demais e você ainda quer transpor tudo isso na palavra escrita? Daí é que vai desperdiçar todo mundo..escrever? Pff, escrever..Não, não, eu posso lhe contar bastante coisa, mas com uma condição: sem anotações, sem gravação de nada. Se o senhor é escritor, vai lembrar como eu falo, ou vai lembrar até melhor do que eu falei. É assim. É assim?

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Meia noite volta

Meia noite e meia quando Júlio levantou, pôs as calças e acendeu a luzinha fraca, que agora ficava perambulando majestosa, se alargando por todo o quarto. Silêncio voava sob o apartamento e ele sem sono metia os dedos na calça jeans, esparramada na cadeira perto da cama. Tinha até que acordar cedo, mas não importava, precisava dar uma volta, nem que fosse pela rua, pelo bairro. Encontrou as chaves largadas no chão e se apressou em tomar o caminho da rua do jeito que estava vestido mesmo: o chinelo, a bermuda, uma camisa larga. Avançava o portão de saída do prédio e encontrava a calçada e de repente já dobrava a esquina, cortando caminho até a avenida, onde carros minguados eram cada vez mais escassos na noite que adentrava a primeira hora da madrugada. Mirando seus olhos, devagar, ele já podia ver o reflexo dos faróis dos carros (tons cinza misturados) com o vazio transparente de vento. Ventava um pouco, mas nada que atrapalhasse o passeio noturno. Nada que atrapalhasse a visão de Júlio que ficava estarrecido com a altura dos meios-fios da calçada. Só lá pelas duas da manhã esperando para atravessar a faixa ele conseguiu se perder de vez ao confundir as cores e os olhos da pedestre que cruzava ao seu redor. Destoado, sem saber o que fazer resolveu não fazer nada. Tomou o caminho de volta para casa por um atalho entre um jardim, pelo qual nunca havia passado – pelo menos de dia. Dobrou a esquina e cortou caminho direto para o prédio. Aos poucos, a noite ia terminar de ser consumida, alimentada por sonhos, olhares, cores.

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