quarta-feira, 31 de março de 2010

Teoria número vinte e sete: sobre a questão do narrador e a fuga do autor.

Imagine um personagem. Quais características você colocaria nele? A sua vida? O seu cotidiano? Todas as coisas que você faz no dia a dia? Não. Quer dizer, não assim tão entregue de imediato. Eu sempre imaginei que escrever ficção é fantasiar o seu personagem do modo mais realista ou mentir do modo mais verossímil possível (caso queiramos produzir literatura mais realista).


Acontece que muitas pessoas que gostam de escrever confundem o autor com o narrador.


Apesar de o conceito ser de fácil entendimento, quando a pessoa vai para a prática mete o “pé pelas mãos” muitas vezes porque não consegue se diferenciar. Não conseguem se despir e fugir dos seus pensamentos. Isto é, o autor (“pensamento da pessoa”) invade o campo do narrador (“pensamento do personagem inventado”).


E isso fica evidente principalmente nos textos narrados em primeira pessoa.


Já escrevi uma vez que era muito mais fácil escrever em primeira pessoa (pelo menos para mim), o problema é que é complicado que um texto desse tipo fique realmente bom. Justamente porque nesse tipo de texto o escritor deve fugir completamente de si para encarnar o personagem, deve ser o “eu narrador” apenas.


Rubem Fonseca é mestre nesse sentido, leia “O cobrador” para saber do que estou falando.


Talvez seja mais fácil começar a escrever como um narrador onisciente, aquele que saberia tudo o que está acontecendo em todo o universo do texto. Mesmo assim é sempre necessário fantasiar ao máximo, criar todo o campo necessário para a boa literatura. Que deve ser, sobretudo, singela, despida de furos do autor, mas podendo ter intervenções do narrador (como próprio machado fazia) e que às vezes deve mais sugerir do que mostrar.

Crônicas de um repórter novato – parte XV

Há alguns dias tive a oportunidade de entrevistar um dos jornalistas mais respeitados do país, o Mino Carta, atual diretor de redação da revista Carta Capital (que, segundo o próprio não leva o nome “Carta” devido ao seu sobrenome, mas sim à editora da publicação). Ele é reconhecido também por ser um dos responsáveis na fundação de revistas que marcaram época como Veja, Isto é, Quatro Rodas e, mais recentemente, a já citada Carta Capital. Mino também é reconhecido por sua postura crítica em relação à imprensa brasileira – cada vez mais alinhada ao poder dos grandes veículos de comunicação.


Entrevistei o italiano (sim, ele nasceu no país em formato de bota e veio cedo para o Brasil) pelo veículo em que trabalho, o Jornal do Comercio aqui do Rio Grande do Sul. Nem preciso dizer que estive nervoso durante o tempo que antecedeu a entrevista, logo, me preparei para a pauta fazendo os chavões necessários: lendo bastante sobre a vida do entrevistado, lendo o que ele escreveu, observando entrevistas anteriores e planejando uma ordem de perguntas coerente. Como tinha um tempo limitado – cerca de meia hora – fiz em torno de 12 perguntas, para minha sorte ele acabaria respondendo todas. Acabei roubando até mais alguns minutos.


Mas não é exatamente sobre a entrevista que quero falar hoje, porque isso você pode ler na minha matéria feita para o Jornal do Comercio, na entrevista publicada na íntegra no Jornalismo B ou, ainda, em um texto mais aprofundado e literal no Pareotrem (esse dentro de alguns dias). Gostaria de falar sobre o que me aconteceu alguns momentos antes da entrevista.


Quando ainda me encontrava na redação.


Não sou um desses caras que se expõem por qualquer coisa, logo acho que isso vale a pena. Tenho uma grande futura colega de profissão – ainda não sou formado – que costuma me ajudar em momentos em que me encontro em dificuldade. Mais do que isso, acredito que criei com ela uma espécie de laço de amizade unido a uma admiração – pelo menos da minha parte. Acontece que eu estava nervoso antes da entrevista, como já citei anteriormente, e a Caroline conversou comigo, e me fez observar várias coisas importantes sobre o jornalismo e, de certa forma, sobre mim que eu não havia percebido – ou escondia da minha consciência.


Uma verdadeira lição que eu certamente levei para a entrevista e para o futuro.


Quem me conhece sabe que tenho uma dificuldade em tecer elogios, até porque poucas pessoas realmente merecem. Mas para a Caroline eu abro a justa exceção: tenho o prazer de dizer que é uma das profissionais que mais admiro e que, por sorte, tenho contato desde o meu primeiro estágio em um jornal impresso, lá no Jornal da Universidade (UFRGS) e agora no Jornal do Comercio. Que venham muitos anos de sucesso para ti, tia Carolete.

terça-feira, 30 de março de 2010

O Retorno de Perséfone

“Por que tu não escreve sobre amor?”, ela me sugere com aqueles olhos que parecem refletir um céu sem sol, sem nada – apenas o mais lírico e transbordado mar límpido de sensações que eu já havia navegado. Eu meio torto e nervoso (sempre fico assim na frente dela) respondo: “Sobre amor?”. Encontrava-me escasso de ideias e lamentava isso com minha amiga Mariana, pela qual nutria um afeto há muito tempo contínuo e há muito tempo abafado. Mas logo emendei a frase “é um tema tão banal, literatura de verdade não consegue angular ou perimetrar o amor, é por isso que a geração romântica afundou, é tudo ilusão de uma coisa que raramente acontece, sabe?”. Vejo que ela se sente um pouco incomodada com as últimas palavras. Sei disso porque os formatos dos seus olhos mudaram, abstiveram-se, criando uma negação ao meu ser, modificando um pouco da cor. Ela diminui os passos, caminha lentamente e começa a levantar aquelas jazidas brilhantes em minha e direção e, por fim, me encara, disparando: “não sei para ti, mas amar para mim não é tão difícil. Talvez tu tenhas o coração muito hermético, acho que há vários modos de gostar de algo ou de alguém, veja aquela árvore...” enquanto ela fala meus olhos seguem seu braço que aponta levemente para um Ipê mediano que acabamos de passar, porém, eu, por descaso, ou por causa daqueles olhos, não notara.


Ela suspende o nosso silêncio, a humilde pausa tão comum que existe ao analisarmos alguma situação e diz: “...aquela árvore..sabe em que época do ano estamos?” Agora, no meio dessa rua quieta, encaramos um ao outro, estáticos, e há algumas pequenas faíscas saindo de nós, daquelas que antecedem um grande momento e eu não sei qual é a nossa estação, nem nada. “Ah, não tenho certeza, mas é final de agosto”, respondo como uma possível alternativa para não passar o papel de um completo desinformado. “Isso”, ela diz olhando para a árvore e depois caminhando na minha direção, retomando “Veja, e pense comigo, o que um Ipê faz nessa época do ano? Se apaixona. E se levanta, cresce e fica mais bonito. E não é só ele que fica diferente, pois também serve para enfeitar a cidade inteira, transformando as pessoas ao redor”..E isso só poderia vir de uma doce bióloga mesmo, é só um Ipê Roxo. O que ela quer dizer? Toda as árvores crescem. Faz parte da vida.



Volto à realidade com ela em encarando: as duas cachoeiras azuis me jorrando ideias que eu ainda não entendia muito bem, deixando-me meio tonto. Ouço a voz de Mariana, prosseguindo, “e há algo de mágico e muito sutil nessa árvore, sabe? Algumas pessoas acreditam que ela representa o símbolo da dubiedade. Há uma lenda que os gregos nos deixaram na qual uma deusa chamada Perséfone permanece seis meses na terra, que englobariam a primavera e o verão, e passa seis meses no Reino dos Mortos, sendo esse o período conhecido por outono e inverno. Acho sinceramente que a deusa está chegando agora ao nosso mundo. E as árvores parecem estar se apaixonando novamente. As flores estão recém começando a nascer e um leve roxo já dá os seus ares, fluindo levemente. É possível perceber o doce contorno, principalmente quando o sol banha aquelas pétalas ainda pequenas..” Enquanto ela descrevia o Ipê, eu só cuidava dos seus olhos claros, da boca e a descrevia internamente para mim.


A primeira sensação, e uma das que mais me impressionam: o cheiro. Simplesmente algo tão singular que nem aquelas flores roxas do Ipê – no alto de sua beleza – irão emitir. Não há ninguém de aroma tão dócil e envenenado de uma forma tão sensual quanto Mariana. Talvez seu odor explique seus olhos também, porque combinam de uma forma tão peculiar que não me arrisco a ficar mais de trinta segundos os encarando fixamente. Sabe-se lá o que pode ocorrer. Há um perigo de perder-me por aí e sumir, caminhando por mundos que eu tenho medo em não ser convidado. A boca, porém, era o que completava tudo de uma forma fantástica, um lábio levemente rosado, ágil, esperto, malandro que me refutava toda hora e fazia eu me perguntar – silenciosamente – será que se, simplesmente, roubasse-lhe um beijo a parede que há entre nós cairia? O que começa a despencar são algumas folhas mais soltas da árvore que observamos. Trazidas pelo vento elas circulam, formando pequenas espirais, dançando levemente no céu e aproximando-se cada vez mais de nós. Até pousar nos pés, onde roçam os calçados fazendo pequenos carinhos, como se quisessem me empurrar para perto dela. Entendo a sensação, quem sabe a deusa Perséfone não esteja tentando me enviar um sinal? Quem sabe tudo não esteja conectado e as verdades gregas sejam reais mesmo?


Mariana está sorridente com a sua explicação sobre o grande Ipê Roxo, claro, toda a pessoa que tem certa carga de conhecimento adora transmiti-lo para pessoas leigas. Olho o relógio e é quinze para as quatro, quando ela começa a caminhar ao encontro da árvore. E eu só a sigo. Muito mais por instinto, por impulso e sensação do que por raciocínio – não penso em editor, não penso em cobrança, penso nela. E naquelas pernas que tem olhos lindos, e que podem devorar qualquer homem são que conheço. Estamos embaixo do Ipê e o tempo ficou mais raso, tranqüilo, empurrando serenamente nossas vontades, como se houvesse um espaço só nosso. O vento já não sopra que nem antes, e os olhos parecem ser os meus amigos novamente, porque entendem que eu caí naquele conto da deusa grega. Sim. Acho que ela estava ali, no meio de nós, quando Mariana sorri de uma forma distinta e pergunta “Você já se apaixonou de verdade? Não sei se foi o sol que batia no rosto dela, ou aquela brisa suave que parece só passar quando nos encontramos em baixo de uma bela árvore ou ainda aqueles olhos que me intimidavam e me derretiam, só tenho certeza que naquele momento eu sabia exatamente o que escrever. Linha por linha, perfeitamente. Iria escrever sobre como me apaixonei de verdade. Realmente. Quando cheguei em casa fui direto à maquina de escrever e comecei o derradeiro texto: “Por que tu não escreve sobre amor?”, ela me sugere com aqueles olhos que parecem refletir um céu sem sol, sem nada..”


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A Ilustração dessa vez foi de Ana Karina Silveira Gloria. Todo mês trago um post com uma ilustração feita por uma pessoa convidada.

domingo, 28 de março de 2010

Para quebrar o silêncio – Postagem Temática

Sabe Isadora nosso filho me perguntou hoje por que eu nunca disse “Eu te amo” para ele. Foi como se eu tivesse batido o carro; não, foi como se eu tivesse ficado meio sedado e com a garganta fechada, procurando uma resposta. Eu não me lembro o que eu disse. Eu só beijei a testa dele e fechei a porta do quarto. Deixei ele dormindo lá sozinho. Isso foi agora há quinze minutos, Isa. Não sei se ele está dormindo ainda. Não tenho coragem de entrar lá para conferir. Você sabe. Não, melhor, você não sabe. Nem eu sei. É, você tem toda razão me olhando com essa cara de espanto. “Que monstro é esse com que eu me casei”, você vai se perguntar. Mas não era isso que eu queria que você pensasse.


Veja só, você não chegou a conhecer o meu pai. É uma pena, ele era um grande homem, bem respeitado. E como todo homem desse porte ele era de difícil entendimento. Ninguém o captava direito, nem minha mãe, nem a mãe dele. Ninguém. Às vezes ele ouvia música durante horas a fio, apenas bebendo o whisk – ficando muito tempo em silêncio nos intervalos das trocas dos álbuns. Era desolador.


Mas de alguma forma eu o admirava.


Houve uma noite em que a mãe não estava em casa e ele me levou para a sala para ouvir a música. Nós ficamos em silêncio todo o tempo, enquanto a agulha do toca disco deslizava nos sulcos e a música se formava. Eram todas ótimas canções, algumas, inclusive, eu escuto até hoje. Você já deve ter percebido. Mas não são as músicas que eu mais admirava naqueles momentos e foi isso que eu percebi. Era o silêncio, era o modo como o silêncio entre tudo (mesmo com a música alta) dignificava aquela posição e o quanto ele me fazia entender o meu pai. Uma espécie de amor e compreensão que só se percebia daquele jeito.


Por isso para mim é sempre difícil dizer “eu te amo”.


E eu achei que eu poderia me fazer entender, como eu entendia o meu pai. Era uma relação estranha, eu sei. Achei que eu poderia desenvolver com o meu filho um outro tipo de laço também, um atalho para não proferir as três palavras. Mas talvez eu esteja errado. Talvez eu possa sim facilitar para o nosso filho, talvez seja hora de quebrar o silêncio.


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Essa postagem faz parte do projeto Blogsintonizados. Funciona assim: É escolhido um tema por meio de uma votação e, a partir disso, os blogs postam sobre o assunto mais votado. Entre no blog e participe você também. Será muito bem vindo.


Sugestão para o próximo tema: Sexo

terça-feira, 23 de março de 2010

Carta 03

Rita,


O seu maior problema sempre foi pecar pelo exagero. E assim como toda sentimentalista você se perde em detalhes e em emoções baratas. O pássaro do Julio não teria morrido se ele soubesse cuidar direito, ou seja, se você tivesse ensinado o menino a cuidar melhor do tal bicho. As coisas morrem, mas algumas morrem antes da hora, não? Posso não ter sido a melhor mãe do mundo, mas você também nunca foi de se aproximar – reclusa no seu canto, cheia dos seus medos.


O que posso fazer se nascemos tão diferentes?


Por favor, peço que não transmita a sua sina ao meu neto. Ele não merece viver com vergonha e ele não merece ficar se remoendo pelos detalhes toda hora. Rita, a vida é um livro que você não leu e não teve a coragem de tentar passar do primeiro capítulo. Agora, não me venha dizer que somos distantes; não, agora não me venha dizer que eu lhe afastei. Que tem medo, repulsa ou qualquer outra coisa que um psiquiatra barato poderia dizer.


Esse muro, que só você enxerga, foi só você que construiu. Eu estou aqui no mesmo endereço que convivemos durante muito tempo. Se deseja “compartilhar alguma coisa que não seja a distância”, como você mesmo disse, por que não veio para cá ao invés de mandar uma carta?


A palavra escrita não consegue tocar o que realmente importa.


Renata


Em resposta à Carta 02


domingo, 21 de março de 2010

21/03/2010

Para Mariana Sirena

Agora no abraço

reside mais de nós.


Esse pronome que entrega

o compromisso.


Assim como o toque das peles,

que se pedem

que conclamam


união.


Por entre sorrisos abertos

debaixo

daquele

sol – também aberto.


Nós também abraçamos a vida.

Nós também nos entrelaçamos,

guiando os braços

em

uma só

medida.


sexta-feira, 19 de março de 2010

Drapetomania

Tenho pensado demais em manias e no modo como elas me enquadram em uma espécie de categoria da qual às vezes tenho orgulho em adentrar. Às vezes, porque manias podem ser chatas e preocupantes (caso você tenha TOC e desligue a luz 17 vezes antes de sair de um recinto, porque acha que a sua família morrerá se não fizer isso, procure um médico agora). Tenho algumas manias esdrúxulas que revelei há poucas pessoas na minha vida e não vou ficar aqui contando no blog, porque para frisar novamente, esse não é um blog de desabafo – ainda bem. Ao invés de ficar chorando pitangas sobre as minhas poucas manias, prefiro refletir sobre o que elas indicam.


Claro, as manias, em minha concepção, nada mais tratam do que atenuantes. Uma forma de preencher algo que falta a pessoa. Não necessariamente algo físico, mas talvez sensorial, quase como se inventássemos utilidades para coisas que não tem nenhuma utilidade. Para fornecer melhor compreensão ao leitor, trago um exemplo próprio (só para vocês acharem que não sou chato o suficiente, vou me expor um pouco): mexer no cabelo. Essa é uma das minhas manias mais simples e que criei, quando tinha o cabelo mais comprido lá pelos idos de 2004, 2005. Como sou meio tímido, levo a mão involuntariamente ao cabelo em situações em que fico também involuntariamente desconfortável. É uma resposta que o meu corpo encontrou à timidez. Quando estou completamente a vontade não mexo no cabelo.


E é a partir dessas pequenas coisas que a gente vai se descobrindo também. Talvez quando você conseguir se despir de todas as suas manias, você tenha encontrado alguém especial, ou alguma situação especial.


Outras manias estão ligadas a segurança, e a uma coisa muito interessante chamada regra própria. Apostar consigo é um jogo que venho experimentando há certo tempo e que vem dando certo. Pode virar uma mania também, como é o meu caso. Todo mês aposto que farei 12 números de postagens aqui no Contagens. Me impus essa meta e levei adiante. Virou uma mania também, uma bela mania de escrever. Com certeza a minha maior mania.


Em tempo: Drapetomania, mania de andar sem destino. Ops, mais uma revelação. Droga.

terça-feira, 16 de março de 2010

First day of my life

And you said, "This is the first day of my life
I'm glad I didn't die before I met you
Now I don't care, I could go anywhere with you
And I'd probably be happy"




Besides, maybe this time it's different
I mean I really think you like me

sexta-feira, 12 de março de 2010

Carta 02

Mãe,


Estou te escrevendo porque aconteceu uma dessas pequenas tragédias aqui em casa. Espero que leia a tempo de poder ajudar a consertar o nosso problema. É com o Julinho, coitado. Sabe como ele adorava aquele canário amarelo, né? Ele amava aquele bicho, passeava com ele todo santo dia pelo pátio e levava aquela gaiola para todos os lados. Chegava a ser engraçado. Era um canário agitado, ele parecia gostar das traquinagens do seu neto. Costumávamos brincar dizendo que ele gostava mais do Bob do que de nós. Do que a senhora também – já que a sua ausência virou uma espécie de companhia.


Mas foi ontem que o barco desaguou. A gente encontrou o Bob caído dentro da gaiola, morto, olhos esbugalhados e o bico um pouco rachado. Várias formigas o devoravam, pouco a pouco. Possivelmente havia morrido no começo da noite passada e ninguém se deu conta, ninguém ouviu nenhum barulho. Pensamos de imediato no Julinho que ainda dormia no quarto, inocente de tudo que acontecera. Tiramos as formigas de cima do pássaro e o depositamos em um recipiente plástico, combinamos de que iríamos inventar alguma história.


Convencionamos todas as desculpas, pensamos em possíveis respostas para possíveis perguntas que ele nos fizesse. A ideia era simples: por um descuido de alguém da casa, a portinha havia ficado aberta e ele teria ido embora, para a natureza, com os seus outros amigos pássaros. Mas o guri não aceitou essa. Veio com argumentos difíceis de serem batidos, biologicamente corretos e deveras avançados para uma criança de sua idade. O nosso silêncio acabou dando resposta. Engraçado que, para entender aquilo que não é dito, basta sentir.


Não sei porque naquela hora eu senti a senhora também, minha mãe. Não me lembro de ter tido um pássaro, nem nada. Acho que nós nunca tivemos a oportunidade de dividir alguma coisa. Sei que esse pensamento me ajudou a querer entender o que se passava com o meu filho. Eu sentei, abracei, abracei novamente, coloquei do meu lado e expliquei duramente, amavelmente que as coisas morrem. “As coisas morrem, filho”. Eu disse uma hora. Ele fez um beiço para não chorar e os olhos tentaram fugir da consciência que enfim chegava naquela cabeça de 10 anos.


E que, de certa forma, demorara muito mais tempo para chegar na minha. As coisas morreram entre nós, mãe – e há muito tempo. Então estou te escrevendo para contar essa pequena tragédia, que começou com o Julinho, mas acabou comigo. Não acho que você possa ajudá-lo, até porque acredito que ele se virará bem a partir de agora. Mas eu, entretanto, eu gostaria de sentir a senhora, de compartilhar alguma coisa que não seja apenas a distância.


Da sua,


Rita


quarta-feira, 10 de março de 2010

Dos olhos

- Próximo!

- Boa tarde.

- Pois não?

- Eu quero vender a minha coleção.

- Coleção de quê, meu amigo?

- De olhos.

- Olhos?

- Sim, olhos.

- ...Há muita variedade?

- Sim, foram anos de coletas, tenho de todas as cores, até o lilás...mas por esse cobro mais caro. Foi difícil de conseguir.

- Imagino.. desculpe perguntar, mas estou curioso... por que está se desfazendo disso tudo?

- Minha mulher. Ela acha que ocupa muito espaço na nossa casa. Ela pretende fazer uma cozinha no lugar...Sabe como são...

- Entendo..entendo...sou casado há 20 anos...

- Pois é, mas, enfim, ficou interessado?

- É uma bela coleção, admito. Olha esse olho, tão bem conservado! Lembra até os da minha primeira namorada..

- Pode ter sido ela..

- É verdade. Bom, tenho uma proposta..espera..são quantos itens mesmo?

- 200 pares de olhos..o que dá 400 no total..

- Ok, 2000 reais o que acha?

- Fora de cogitação...não passei anos atrás dessas belezuras..só por isso..

- 3, 500?

- Não.

- 5, 000 é a minha última oferta.

- Promete cuidar bem deles? Tem que trocar o líquido sempre, se não apodrece. Foi difícil. Muitos anos estarão sendo entregues à você.

- Pode deixar, amigo. Pode deixar.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Sobre o meu quarto*

No meu quarto há lugares
que nem eu mesmo conheço.
Escondidos, eles não incomodam,
fundem-se com as paredes.

Eu, às vezes, ouços estalos.
Eles não vem de lugar algum,
mas eles chocam e ecoam na minha cabeça.
Só para causar a sensação de incerteza.

Sob o quarto vejo sombras,
que não se mexem.
Obedecem meus comandos,
ditam o meu sono -
com a maior
cautela
do mundo -

Mas quando eu acordo, eu vejo o sol.
a luz brilha por trás da cortina.
Não há mais nada nesse quarto,
só um vazio que agora me faz companhia.

* feito em algum lugar de 2005

sexta-feira, 5 de março de 2010

Meu roteiro para amanhã - Postagem Temática

São seis e quarenta e cinco da manhã, quando eu levanto. Ou melhor, nós dois levantamos. Hey, eu estou com aquele bottom de submarino amarelo que você me deu seis meses atrás. E eu me visto, e eu tomo banho para me acordar. Tento me arrumar bem, e aproveito para imaginar alguns diálogos para quando te encontrar. Mas nada disso dá certo, em momentos deveras premeditados. Eu como qualquer coisa e bebo qualquer coisa no café, porque eu realmente não estou me importando. Nem um pouco.


Eu só quero que as próximas seis horas passem voando, e você sabe. Já foram seis meses, assim por entre estardalhaços, por entre oceanos, terras, montanhas e sotaques. O meu nunca mudou. O seu, apesar de provar uma gama de novos, acredito que também não. Ainda deve falar com aquele tom suave tão seu e que almejo tão nosso.


São dez e pouco e eu vou brincar de dirigir novamente. Mas a minha cabeça ainda está em outro lugar, é claro. E ela adora ficar lá. Droga. Não quero prestar a atenção nos sinais e nos inúmeros carros a minha frente. Para que eles me servirão? Para que droga eles me servirão se eles não me levam a você? Prefiro os meus sinais internos, que apontam um só destino. Eles sim sabem das coisa, eles sim sabem o que eu desejo.


E agora são meio dia e pouco, eu preciso almoçar e preciso pensar em o que te comprar. Na realidade, eu já sei. Eu tive aquela ideia que eu te contei, mas parecia um pouco inviável, não é, ainda, o momento. Pensei na flor obviamente, na rosa que eu vou, novamente, te dar.


E não é nem meio dia. Mas já são14:45 da tarde e eu vou passar a lembrar sempre desse horário também. Porque eu estou te vendo chegar, “toda linda e despenteada, que maravilha, que coisa linda”, e sorrindo, olhos emocionados, meio cansado, alegre, alegre, alegre. Eu estarei feliz também, obviamente. Assim como obviamente tímido, por causa da presença dos seus pais, mas é natural. Tudo será muito natural daqui para a frente.


A girar.


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Minha sugestão para o próximo tema é Angústia.


Esse post faz parte do projeto Postagem Temática, no qual é escolhido um tema, por meio de votação, e os blogs devem postar sobre tal assunto. Acesse o Blogsintonizados para maiores informações.