terça-feira, 30 de março de 2010

O Retorno de Perséfone

“Por que tu não escreve sobre amor?”, ela me sugere com aqueles olhos que parecem refletir um céu sem sol, sem nada – apenas o mais lírico e transbordado mar límpido de sensações que eu já havia navegado. Eu meio torto e nervoso (sempre fico assim na frente dela) respondo: “Sobre amor?”. Encontrava-me escasso de ideias e lamentava isso com minha amiga Mariana, pela qual nutria um afeto há muito tempo contínuo e há muito tempo abafado. Mas logo emendei a frase “é um tema tão banal, literatura de verdade não consegue angular ou perimetrar o amor, é por isso que a geração romântica afundou, é tudo ilusão de uma coisa que raramente acontece, sabe?”. Vejo que ela se sente um pouco incomodada com as últimas palavras. Sei disso porque os formatos dos seus olhos mudaram, abstiveram-se, criando uma negação ao meu ser, modificando um pouco da cor. Ela diminui os passos, caminha lentamente e começa a levantar aquelas jazidas brilhantes em minha e direção e, por fim, me encara, disparando: “não sei para ti, mas amar para mim não é tão difícil. Talvez tu tenhas o coração muito hermético, acho que há vários modos de gostar de algo ou de alguém, veja aquela árvore...” enquanto ela fala meus olhos seguem seu braço que aponta levemente para um Ipê mediano que acabamos de passar, porém, eu, por descaso, ou por causa daqueles olhos, não notara.


Ela suspende o nosso silêncio, a humilde pausa tão comum que existe ao analisarmos alguma situação e diz: “...aquela árvore..sabe em que época do ano estamos?” Agora, no meio dessa rua quieta, encaramos um ao outro, estáticos, e há algumas pequenas faíscas saindo de nós, daquelas que antecedem um grande momento e eu não sei qual é a nossa estação, nem nada. “Ah, não tenho certeza, mas é final de agosto”, respondo como uma possível alternativa para não passar o papel de um completo desinformado. “Isso”, ela diz olhando para a árvore e depois caminhando na minha direção, retomando “Veja, e pense comigo, o que um Ipê faz nessa época do ano? Se apaixona. E se levanta, cresce e fica mais bonito. E não é só ele que fica diferente, pois também serve para enfeitar a cidade inteira, transformando as pessoas ao redor”..E isso só poderia vir de uma doce bióloga mesmo, é só um Ipê Roxo. O que ela quer dizer? Toda as árvores crescem. Faz parte da vida.



Volto à realidade com ela em encarando: as duas cachoeiras azuis me jorrando ideias que eu ainda não entendia muito bem, deixando-me meio tonto. Ouço a voz de Mariana, prosseguindo, “e há algo de mágico e muito sutil nessa árvore, sabe? Algumas pessoas acreditam que ela representa o símbolo da dubiedade. Há uma lenda que os gregos nos deixaram na qual uma deusa chamada Perséfone permanece seis meses na terra, que englobariam a primavera e o verão, e passa seis meses no Reino dos Mortos, sendo esse o período conhecido por outono e inverno. Acho sinceramente que a deusa está chegando agora ao nosso mundo. E as árvores parecem estar se apaixonando novamente. As flores estão recém começando a nascer e um leve roxo já dá os seus ares, fluindo levemente. É possível perceber o doce contorno, principalmente quando o sol banha aquelas pétalas ainda pequenas..” Enquanto ela descrevia o Ipê, eu só cuidava dos seus olhos claros, da boca e a descrevia internamente para mim.


A primeira sensação, e uma das que mais me impressionam: o cheiro. Simplesmente algo tão singular que nem aquelas flores roxas do Ipê – no alto de sua beleza – irão emitir. Não há ninguém de aroma tão dócil e envenenado de uma forma tão sensual quanto Mariana. Talvez seu odor explique seus olhos também, porque combinam de uma forma tão peculiar que não me arrisco a ficar mais de trinta segundos os encarando fixamente. Sabe-se lá o que pode ocorrer. Há um perigo de perder-me por aí e sumir, caminhando por mundos que eu tenho medo em não ser convidado. A boca, porém, era o que completava tudo de uma forma fantástica, um lábio levemente rosado, ágil, esperto, malandro que me refutava toda hora e fazia eu me perguntar – silenciosamente – será que se, simplesmente, roubasse-lhe um beijo a parede que há entre nós cairia? O que começa a despencar são algumas folhas mais soltas da árvore que observamos. Trazidas pelo vento elas circulam, formando pequenas espirais, dançando levemente no céu e aproximando-se cada vez mais de nós. Até pousar nos pés, onde roçam os calçados fazendo pequenos carinhos, como se quisessem me empurrar para perto dela. Entendo a sensação, quem sabe a deusa Perséfone não esteja tentando me enviar um sinal? Quem sabe tudo não esteja conectado e as verdades gregas sejam reais mesmo?


Mariana está sorridente com a sua explicação sobre o grande Ipê Roxo, claro, toda a pessoa que tem certa carga de conhecimento adora transmiti-lo para pessoas leigas. Olho o relógio e é quinze para as quatro, quando ela começa a caminhar ao encontro da árvore. E eu só a sigo. Muito mais por instinto, por impulso e sensação do que por raciocínio – não penso em editor, não penso em cobrança, penso nela. E naquelas pernas que tem olhos lindos, e que podem devorar qualquer homem são que conheço. Estamos embaixo do Ipê e o tempo ficou mais raso, tranqüilo, empurrando serenamente nossas vontades, como se houvesse um espaço só nosso. O vento já não sopra que nem antes, e os olhos parecem ser os meus amigos novamente, porque entendem que eu caí naquele conto da deusa grega. Sim. Acho que ela estava ali, no meio de nós, quando Mariana sorri de uma forma distinta e pergunta “Você já se apaixonou de verdade? Não sei se foi o sol que batia no rosto dela, ou aquela brisa suave que parece só passar quando nos encontramos em baixo de uma bela árvore ou ainda aqueles olhos que me intimidavam e me derretiam, só tenho certeza que naquele momento eu sabia exatamente o que escrever. Linha por linha, perfeitamente. Iria escrever sobre como me apaixonei de verdade. Realmente. Quando cheguei em casa fui direto à maquina de escrever e comecei o derradeiro texto: “Por que tu não escreve sobre amor?”, ela me sugere com aqueles olhos que parecem refletir um céu sem sol, sem nada..”


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A Ilustração dessa vez foi de Ana Karina Silveira Gloria. Todo mês trago um post com uma ilustração feita por uma pessoa convidada.

Um comentário:

Anônimo disse...

Quando a gente acha que já ouviu de tudo sobre o amor, lê uma coisa dessas.
Rapaz, teu texto simples - tanto quando a história narrada - me fizeram suspirar. Aquele suspiro, suspiro de apaixonada, sabe?
Belo blog :)
Rute Vieira.