segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Desperto, e é cedo

Não para de dançar,
se não eu paro também
e te esqueço.

Chega de fingir,
que eu silêncio e te vejo
desaparecer aos poucos,
também:

Quem disse que era para ser?
Quem disse que ia resolver?

Aqui, já tá tarde,
para qualquer esforço.

Fora (já saio),
desassossego é praxe.

Deixa, eu construo um pedestal,
e posto a nossa frente,
rente em mim
distante em ti.

Deixo você 

dançar
- só dançar -,
enquanto tudo desperta
e sou levado pelos primeiros
pássaros da manhã.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Carta 15

Desculpe ficar assim, mas é que eu não me controlo. É ridículo, eu sei, e eu não queria ficar desse modo. Estou mais leve escrevendo. Ainda é cedo para tanta coisa e eu nem sei o que te escrever agora, porque eu sinto um misto de tanto e a grande maioria desse tanto está na minha cabeça. Mas por que você tinha que mentir para mim? Eu sei, eu sempre quero saber de tudo, mesmo sabendo, na verdade, que é esse tudo que vai acabar com nós. O que eu posso fazer? Dos teus casos, dos teus descasos. Por que a carência é tão importante para você? Por que não ficar sozinho, por que dar, dar, dar. Isso tem algum valor? Adiantou alguma coisa? Deus no céu e alguém no chão. O que restou disso tudo? Eu apareci, mas poderia ser qualquer um. Não? É o convívio velado que dói e os sonhos e recordações suas espalhadas por ambientes em que não existem ou existem em uma realidade paralela. Uma realidade com sucursal em lugares que você esteve, dando dando dando, por aí. Para quê. A cama é nossa, e já foi de quantos. Estou escrevendo assim, porque me sinto melhor soltando essas ideias bizarras e quero ver se consigo dormir de noite agora, enquanto neva e o sol vem degelar os carros congelados da madrugada. 

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Eu não sou mais eu

Lembro quando comecei esse blog há exatos sete anos. Eu não sabia o que escrever e me surgiu a ideia de iniciar o primeiro texto com uma curiosidade asteca que teria acontecido naquele dia, ou seja, hoje, 17 de dezembro.

Por mais que eu tenha diminuído a frequência de postagens aqui no Contagens, ele continua sendo uma das atividades que eu mais gosto nessa vida. Reconheço-me e desconheço-me em muitas desses textos. Eu não sou mais aquele que eu era. E eu ainda sou um pouco daquilo que eu fui e, provavelmente, continuarei sendo – até o momento fatídico de não ser mais. 

O momento, talvez, uma das palavras que defina o Contagens.

Ano passado, praticamente há quase 365 dias escrevi o texto “Agora, é claro”, resumindo aquele 2013, que fora péssimo para mim, assim como eu fora péssimo para ele. Em 2014, eu acreditei e aceitei mais. Comecei a entender melhor o meu compromisso como jornalista e pude delinear o que posso vir a fazer.

A vida, de modo geral, ainda continua confusa para mim, mas agora consigo observar melhor o que sempre foi claro e consistente durante todos esses anos. Eu posso ver aqui dentro de mim, e, desse modo, eu também posso ver refletido no Contagens.  As respostas que eu preciso sempre estiveram variando entre esses dois lugares, esperando o momento certo de caírem no meu colo.

E, mesmo assim, é difícil chegar a elas, porque não são redondas, ou prontas. Elas se transformam também, assim como esse blog, assim como eu.

Escrever é a chave de tudo. Assim como o jornalismo cultural na minha vida profissional. E a importância que eu dou para os relacionamentos. Minha vida gira em torno disso tudo. E me transforma periodicamente. Pois, então, decidi escrever mais, trabalhar mais com o jornalismo cultural e prezar ainda mais pelos meus relacionamentos.

Sete anos não é pouco.



terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Retalhos de tempo - Boyhood


*Não sei o que mais me marcou em Boyhood, são tantas cenas e momentos importantes nessas três horas de filme.  A começar pelo projeto ambicioso do Linklater, um dos responsáveis por brincar com o tempo, como na trilogia Antes do...Em outro de seus filmes, o Jovens, Loucos e Rebeldes ele também já trazia esse assunto da mudança, de passar para outra fase ao abordar a juventude nos anos setenta e a transição para o que eles chamam de high school.  Mas todos esses filmes citados tem a característica de não terem um grande acontecimento em suas histórias. A trilogia é conversa, atrás de conversa, já os Jovens é a rotina de amigos que estão crescendo, mudando de vida, e agora em Boyhood presenciamos uma série de acontecimentos na vida do jovem Mason, saindo da infância, alcançando a juventude e a chegando à faculdade. Não há um plot twist: é a vida assim apresentada e filmada ao longo de 12 anos. Acontece que ali cada período daria um outro filme completo, mas isso não é o importante, aqui realmente cada pedaço vale mais que a soma, porque nós vemos a vida não como uma totalidade, mas como retalhos. Contamos histórias e deixamos outra para trás - não contamos. Por isso que o choro desesperador da mãe de Manson no fim é tão comovedor, “eu achei que teria mais tempo”, diz ela. É, todos nós achamos. Várias cenas ficam na cabeça dessa história reveladora porque traz um pouco de cada um, e principalmente daqueles que cresceram juntamente com Manson, todas referências da cultura pop (outra coisa que o Linklater faz muito bem), estão ali. De Yellow à Arcade Fire. Para todos aqueles que se questionam e se perguntam mais sobre a vida, ver como o jovem Manson cresce e se descobre insatisfeito e sempre pronto para experimentar é mergulhar na própria história. 



*Nova série de posts, em que vou escrever rapidamente sobre algum tipo de produto cultural (filme, livros, jogos, quadro,etc) rapidamente, de forma mais instintiva do que analítica. Reforçando mais minhas impressões do que qualquer coisa. 

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Dois perdidos em uma noite deserta

A primeira impressão que eu tive ao chegar em seu apartamento é que era tudo tão organizado para aquela bagunça que ela aparentava ser.  Mas desde quando um riso agitado e uma forma de mexer os braços efusivamente significam tragédia organizacional? Sempre tive um problema em julgar pessoas, vai saber. Certo que eu a conheci há apenas algumas horas, ainda na fila daquela festa que, meu deus, estava um saco. Para falar a verdade, eu já não esperava muita coisa por ali, mas, mesmo assim, fui arrastado por uns amigos e pela possibilidade de acabar bem a noite.  E por acabar bem a noite vocês devem saber que algo como sexo sem compromisso, conhecer alguém legal, beber e não vomitar já seriam o suficiente. Não necessariamente nessa ordem, mas ok, talvez nessa ordem de importância.

Era tarde e tinha essa mulher agitada um pouco atrás da fila da festa e que não parava de falar alto sobre uma banda que eu gosto bastante e de como eles são incríveis e de como ela foi a todos os shows que eles fizeram no País...E eu quase já não gostava mais da banda, quando tentando apenas interromper, acabei começando uma conversa que foi andando mais depressa do que todo o resto da fila e deixando de lado as pessoas ao nosso redor, quando vimos já estávamos na festa e rapidamente à frente do seu apartamento.

417.

Tarde da noite e eu ali esperando ela encontrar a chave certa. Tarde da noite, eu com as mãos metidas no bolso, sem graça. Lembrava da última vez que havia feito algo assim, fazia tempo. Não estou me referindo ao sexo, mas ao sexo com outra pessoa que não fosse minha ex-namorada. Confesso, agora, que não sou um homem muito expressivo em conversas, gosto mais de escutar para, depois, tentar esboçar um raciocínio, mas tudo fluiu tão rapidamente que não tinha como não ir para a casa dela, para acabar “bem” a noite, para, então, se tornar algo que eu não esperava que acontecesse e que, desse modo, fosse uma surpresa a qual eu pudesse me gabar no dia seguinte para os mais chegados: “Se lembra daquela guria da fila da festa ontem? Pois é, fui para a casa dela...” Mas no fundo eu sabia que nada disso realmente importava e que as minhas mãos no bolso apenas esclareciam tudo, elas praticamente falavam que se a gente só conversasse já estaria ok e eu ficaria feliz, porque eu queria conversar sobre coisas sérias e não tinha conseguido fazer isso com ninguém ainda. E, com ela, tinha visto uma abertura. Uma pequena brecha nessa eterna fechadura comprimida que é vida.

Meio bêbado a gente pensa em cada coisa.

Quando , enfim, ela conseguiu abrir a porta, pude ver o apartamento organizado milimetricamente. Na estante gigante que encobria toda a parede da sala vários livros de todos os tipos, no qual os de filosofia tomavam a frente. Um pouco bêbada, chegou dançando entre os sofás e ligou o som. Olha a nossa banda favorita aí novamente. É verdade, é verdade, eu sabia que você ia gostar, nossa, esse é melhor álbum deles, não é? Não sei, acho que prefiro o material antigo. Sim, sim, pode ser. No canto, perto do sofá um imenso gato deitava da forma mais confortável do mundo, encarando-me, abrindo e fechando os olhos. Nós acordamos o seu gato, que fatalidade. Qual o nome dele? Dela! Minha única fiel companheira nessa vida, se chama Minerva, a gata. Haha, Minerva como o sabão em pó? Não, Minerva como a deusa romana, sabe? Da sabedoria e das artes...Eu sei, eu sei, estava só brincando contigo. Ah, sim, haha. Mas não brinque muito com ela, ela morde, cuidado. É difícil de ganhar dela em uma briga. Falou isso me mostrando uns arranhões no braço e deixou a sala, disse que ia tomar banho, estava muito cansada e queria tirar aquele cheiro de fila dela, aquele cheiro da festa. Eu concordei e sentei no sofá.

Chuveiro ligado.

Era uma e meia da manhã. E eu só imaginava o modo como a água descia pelo seu corpo. Ao mesmo tempo, a gata Minerva sai do seu cesto-altar e tal como uma deusa, imponente caminha em minha direção. Olhos fixos, ela estanca em minha frente, encostando a cabeça em minha perna. Acaricio-a com um gesto de respeito e afeto, o que ela parece entender. Como é a sua dona, Minerva? Ela te alimenta bem? Pelo jeito sim, né? Pelo jeito sim. Me conta mais sobre ela, me conta. A gata entorta a cabeça, lambe a pata e vira de costas. Atrás de algo mais interessante. Acompanho a caminhada e reparo nas fotos em cima da estante, todas de paisagem, nenhuma de pessoas, nenhuma dela. A música continuava tocando, uma das minhas faixas favoritas.

Chuveiro desligado.

Do banheiro, então, surge pela porta uma nuvem de vapor da água e por meio da neblina improvisada: ela, enrolada de toalha. As pernas morenas e o sorriso aberto. Cabelo molhado escorrendo nas costas, pés sem chinelo, não se importando em sujar o chão, porque ela era assim, ou parecia ser assim, não sei. Disse que ia ao quarto, se vestir, mas que era para eu continuar ali, a esperando. Tá certo, respondi, com as mãos no bolso, olhando ela ir embora.

Tá certo, agora pensei, respirando para imaginar o que poderia acontecer. Estava nervoso como se fosse a primeira vez, a primeira vez de muitas vezes? Não sei. Tá certo, o que eu poderia fazer? Estava destinado a levá-la para o quarto. Agora que eu consegui entrar no apartamento dela, no meio da madrugada, depois daquela festa terrível, eu, enfim, precisava “acabar bem a noite”. Tá certo, a gata Minerva pensava me olhando. Você está pronto? Estou, Minerva. Eu acho. Não sei, Minerva. Eu queria estar pronto? Queria até, eu queria depois que vi a tolha amarrada no corpo dela. Ela disse para eu esperar e eu vou continuar esperando. A gente espera tanta coisa na vida, Minerva. Acho que passou uns 5 minutos, porque tocou duas músicas e o álbum tem músicas curtas,  quando ela saiu do quarto, sonolenta em uma camisola toda acordada, olhando para mim com os olhos cansados e uns olhos assim que eu me lembro de ter visto só algumas vezes em tão poucas pessoas, que eu não sei se era a bebida, a minha confusão, a Minerva me perguntando se eu estava pronto, mas eu resolvi simplesmente pegá-la pela mão e juntos arrastarmos nossos corpos juntos pelo carpete da sala em uma dança juntos quase caindo enquanto um riso improvisado mais alto dela tropeçava em mim. E nem era a minha música favorita.

De repente ficou tudo tão tarde e ficamos tão cansados que ela simplesmente puxou meu braço, levando-me ao quarto, o tão destinado quarto. A tarefa da noite. O álbum já acabara e a gata Minerva dormia. Enrolada na camisola, enrolada na toalha e em mim, ela me puxava. Vem, vamos dormir. Tá tarde. Vem, vamos para a cama. Você vem? Esbarrei na estante e nela e depois na porta e acabei deitando ao seu lado. Os seios encostando em mim, abraçando como se me conhecesse há séculos. Ela, então, virou a cabeça para o lado, deixando os cabelos em meus ombros, como se lá fossem o lugar de origem deles, e dormiu. 

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Essas coisas que acontecem - 03

Acho que o amigo da cidade grande nunca viu direito, mas aqui em Nero a gente sempre conseguiu ver muito bem, ainda mais naquela época em que não tinha tanto prédio alto, tanta gente, tanta indústria e tanta máquina como tem agora. Pensando bem, parece até que era outro mundo, pensando bem parece até que foi em outra vida, mas quando se olha para trás sempre se parece tanta coisa…Bom, não era isso que queria comentar; naquele tempo a gente conseguia muito bem ver o céu à noite, e ver as estrelas como se fossem um grande mapa aberto à nossa frente, todas piscando, todas ilustradas por demais...Era um espetáculo, diria que o maior espetáculo da cidade. A gente foi morar com Seu Adão e a casa dele pousava no maior morro de Nero na época, e juro que é verdade o que vou falar, era tão alto que me lembro que as estrelas ficavam mais perto do que lá embaixo, na outra parte da cidade. Tenho essa lembrança bem incrustada na memória, metida em algum canto principal da minha cabeça. Era noite, uma das primeiras noites que fiquei acordado até tarde, já não era tão criança, já fazia vários afazeres e me lembro de não conseguir dormir porque o brilho das estrelas era tão forte que entrava no meu quarto, e eu tinha que levantar para fechar a cortina. É verdade; é como era e não como é mais. Seu Adão, que eu nunca consegui chamar de pai, mas que me tratava como um, acho eu, gostava de ficar admirando as constelações, desenhando algumas, brincando de confeccionar as próprias. Foi aí que ele tentou me instruir naquela nomenclatura que no começo achei fascinante por ser tão diferente, Andromeda, Circinus, lembro de algumas, mas o tempo apagou o resto. O tempo é que nunca acabou o que vem agora: um dia daqueles eu estava em meu quarto, quando escutei um barulho lá embaixo no pátio. Era o Seu Adão com a usual parafernalha, visualizando as constelações. Ele me chama, faceiro. Pede para eu descer rapidamente, porque era algo importante o que ele tinha acabado de fazer, pelo jeito. Chegando lá, disse que tinha sinalizado e pontuado a constelação mais bonita, criada a partir da disposição e da justaposição das estrelas de diferentes constelações. Eu apontei o dedo para o céu, tentando entender, quando ele me disse que o nome da constelação levava o nome da sua filha, que ele não via há tempo, mas que estava para chegar e eu nem sabia que existia: Inara. Logo depois me deu um tapa na mão e falou para eu não apontar para as estrelas que dava verruga, eu nunca mais fiz isso, mas se alguma coisa ficou em mim naquele dia foi a lembrança de ter ouvido aquele nome, que soava tão bem, pela primeira vez.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Analógico

O corpo é assim
Bate aqui
Sobe lá

Quebra embaixo,
Melhora em cima

Nunca está inteiro
Nem pode estar

Cresce a hérnia,
Diminui o coração

Diminui a úlcera
Cresce o tempo

É melhor, por via das dúvidas,
Bailar a mão
Socar o pé

E dosar o olhar
Na medida certa do que vai acontecer
Porque se
Se
Se permitir
Não tem como controlar
O que vir


segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Todo mundo tem algo escondido - 02

Assim seja então. Começar pelo começo, que é por onde tudo se ajeita. Mas por onde é o começo mesmo? Depende. Depende do que o amigo quer saber...Ou melhor, depende do que eu quero contar. Meu começo vai ser quando eu pisei em Nero a primeira vez, nessa cidade, que nem era uma cidade ainda, mas um amontoado de casas, um amontoado com bastante espaço livre, um amontoado de montes...A gente era criança e veio arrastado porque não tinha mais lugar para viver aonde a gente vivia antes. Nem vale a pena explicar. A gente? Minha mãe e eu. Não se acometeu de conhecer meu pai, só a sua reputação...Todo mundo tem algo escondido, e a estimada, que agora está descansando em paz, nunca quis me contar. Mais tarde, muito mais tarde, acabei descobrindo por mim mesmo dos seus feitos. Era então crucial ter ido embora, aquele dia eu entendi.  Mas na época eu não entendia é nada, na época eu nem lembro do que me importava. Gostava de correr naqueles pátios grandes. Gostava de ouvir a voz da mãezinha que me fazia dormir assim que o sol baixasse. A coitada passava o dia todo na casa do seu Adão, trabalhava tanto lá como dona de casa, limpando, cozinhando, organizando, ordenhando, costurando. Que de tanto ando, acabou mesmo é se doando pra ele. Meses depois tavam se ajuntando de vez, mais pela convenção, talvez. Mais para ocupar o lugar vazio que a viuvez deixou para o tio Adão, que ainda era moço para assuntos do coração e da casa. O estranho, que por mais que pareça, é que  foi assim que comecei a me enraizar em Nero, que nem era Nero ainda, mas já era Monte, porque nasceu assim. E o mais estranho é que foi assim que meu caminho de vez começou a tropeçar em Inara, que, veja só, eu nem nunca tinha visto, nem sabia que existia, e tudo que eu tenho também é por causa dela... Mas ela não é assunto, não pra agora, não pra agora. O amigo precisa entender que tem hora pra tudo nessa vida, e há hora dentro das coisas que a gente conta também, há hora dentro das frases, hora e tempo por meio das palavras. Eu sei sobre o tempo, eu sei como tempo demora, você pode acreditar em mim. 

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Monte Nero - 01

Quando eu cheguei na cidade, eu era muito novo. Não lembro em que ano foi, e os arquivos, com certeza, não contêm essa informação. Eu era muito novo e muito sem instrução, para o colega ver. Mas eu não cheguei sozinho, não. Minha mãe, já falecida, é que me trouxe, sei que era verão, talvez fevereiro. Muito sol na cabeça, essa é uma das minhas primeiras recordações, o mal estar do calor, os mosquitos, o suor escorrendo. Naquela época eu não estava interessado em quase nada também. Se não fosse Inara, eu nem nada faria. Estava bom para mim como estava, quer saber. E se tivesse ficado estando assim, eu estandaria vivendo daquele modo para sempre. Mas aí, ô colega não iria querer tirar umas palavras de mim, e eu não viveria do modo como vivo hoje. Graças a alguma força maior, e talvez a Inara, eu não preciso da ajuda de ninguém pra me manter, ao contrário, se eu perdesse boa parte do que tenho, poderia viver muito bem por muitos anos, sem me mexer. É o que me interessa só, viver o que resta sem maiores incomodações, que eu já me incomodei deveras muito demasiado nessa vida. Se o senhor soubesse tiraria essa cara do riso na hora...Ahn..Por acaso o senhor que saber? Saber é ruim, saber só leva a mais incomodações, saber só leva a querer saber mais e saber mais e saber mais... Conhecer pra quê. Eu não quero mais é conhecer nada, eu não quero mais é saber de ninguém. Encosta esse bloco para lá, tira essa geringonça daqui. Não me interessa compartilhar o tanto que eu já fiz. Os outros querem saber o quê? Só falar já é burocratizar o infinito por demais e você ainda quer transpor tudo isso na palavra escrita? Daí é que vai desperdiçar todo mundo..escrever? Pff, escrever..Não, não, eu posso lhe contar bastante coisa, mas com uma condição: sem anotações, sem gravação de nada. Se o senhor é escritor, vai lembrar como eu falo, ou vai lembrar até melhor do que eu falei. É assim. É assim?

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Meia noite volta

Meia noite e meia quando Júlio levantou, pôs as calças e acendeu a luzinha fraca, que agora ficava perambulando majestosa, se alargando por todo o quarto. Silêncio voava sob o apartamento e ele sem sono metia os dedos na calça jeans, esparramada na cadeira perto da cama. Tinha até que acordar cedo, mas não importava, precisava dar uma volta, nem que fosse pela rua, pelo bairro. Encontrou as chaves largadas no chão e se apressou em tomar o caminho da rua do jeito que estava vestido mesmo: o chinelo, a bermuda, uma camisa larga. Avançava o portão de saída do prédio e encontrava a calçada e de repente já dobrava a esquina, cortando caminho até a avenida, onde carros minguados eram cada vez mais escassos na noite que adentrava a primeira hora da madrugada. Mirando seus olhos, devagar, ele já podia ver o reflexo dos faróis dos carros (tons cinza misturados) com o vazio transparente de vento. Ventava um pouco, mas nada que atrapalhasse o passeio noturno. Nada que atrapalhasse a visão de Júlio que ficava estarrecido com a altura dos meios-fios da calçada. Só lá pelas duas da manhã esperando para atravessar a faixa ele conseguiu se perder de vez ao confundir as cores e os olhos da pedestre que cruzava ao seu redor. Destoado, sem saber o que fazer resolveu não fazer nada. Tomou o caminho de volta para casa por um atalho entre um jardim, pelo qual nunca havia passado – pelo menos de dia. Dobrou a esquina e cortou caminho direto para o prédio. Aos poucos, a noite ia terminar de ser consumida, alimentada por sonhos, olhares, cores.

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quarta-feira, 2 de julho de 2014

Descobrir

Descobrir. Para mim, uma das melhores sensações. Descobrir os prédios que de repente se abrem, surgindo colossais em uma rua deserta – normalmente sempre cheia de gente, de carros. Descobrir por trás de uma conversa qualquer o que realmente se quer dizer. Descobrir naquele texto complicado, sinuoso, camuflador, aquela fantástica história e se maravilhar. Descobrir a essência de uma pessoa por trás de toda timidez, por trás de toda a felicidade exacerbada. Descobrir o que significa a perna dobrada na cama, o sinal no ombro, no antebraço, descobrir que se respira forte à noite.  Descobrir aquele cacoete na voz e descobrir que se gosta do aparelho, da dobra do sorriso na bochecha, formando a maçã cavocada no rosto. Descobrir-se no outro, e misturar-se com o outro em novas descobertas juntos, descobrindo o que não mais se esperava, des-cobrindo debaixo do assoalho, para todo mundo ver o que estava escondido há tempos. Descobrir que o Café da manhã à noite pode ser o melhor.


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terça-feira, 17 de junho de 2014

Com ar

Fiz poema para te dar
Mas nem sei como entregar
Vou pedir para o pássaro levar

Ele é bobo e rima todo com “ar”
Mas, inclusive, é o seu ar
O meu ar
Nosso ar

Espero que você nem saiba para aonde olhar
De tanto que vai gostar,
Até consigo imaginar

Inclusive vou te falar
Quando a gente caminhar
Para você esperar
Pois aqui parado perante o mar

Estou para você me amar.



Obs: Da série poemas bobinhos

terça-feira, 3 de junho de 2014

Carta 14

Então eu soube que você vai namorar. É o seu primeiro namoradinho, você recém completou 15 anos. Como assim você me pergunta se aquele filme que tá no cinema é bom? Ele quer te levar para ver, né. Tão jovem. Quando eu soube, senti um aperto estranho. Parece que tinha algo ali, entalado. Parece que algo estava errado em mim também. Como assim? Como assim?

Mas passou.

Acho que era só susto. Depois eu percebi que você não é mais aquela menininha. Agora, você está crescida. Agora, você está formando suas opiniões, que darão base para como vai agir daqui em diante. Saiba, porém, que para alguma coisa aqui em mim você sempre será a minha mais nova, a que eu vi crescer, a que eu acompanhei, troquei as fraldas, com quem eu aprendi a carregar um bebê no colo.

Então, já que você está entrando nessa “coisa” meio maluca que é um relacionamento, ainda que seja o primeiro, eu só tenho um conselho: se jogue de cabeça. Se você está com alguém – e esse alguém desperta algo bom e único em você – então é o certo a fazer.  Mesmo que provavelmente vá doer em algum ponto, eu quero que você sinta tudo, toda essa paixão, todo esse receio, toda essa ansiedade, essa dúvida, essa alegria, esse medo. Se apaixonar, estar com alguém, entrelaçar-se...É dar uma espécie de sentido a uma parte da sua vida. E não ter isso ou perder isso, seria simplesmente trágico. Então, sinta tudo, experimente esse sentimento, se perca nele, perca a razão, recobre a razão. 

E, qualquer coisa, estamos aqui. 


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quinta-feira, 29 de maio de 2014

Vai surgir

Os olhos serpenteiros esverdeados vão esboçar a incontrolável vontade. Vai subir pelo corpo e rondar o ambiente, contornar o seu rosto e sucumbir no cabelo cheio de volta - se perder nele, se jogar nele. E vai esperar. O silêncio surgir quando se fica quieto em dois. É o momento sem palavras mais importante do mundo. É o tempo mais calmo e estrangulado. Esse que precede a boca, a sua boca na minha. Toda essa vontade em contratempos de tempo é promessa de se tornar experiente em cruzados encontros das esquinas dos nossos corpos. Escalando todos os beijos imaginados e perdidos. Todos os ensaios de silêncios anteriores, só para este. Só para este. Surgir.

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segunda-feira, 19 de maio de 2014

De repente, quatro anos

Há quatro anos a gente se reunia num apartamento pequeno e cheio de afeto em uma rua do Bom Fim. Não me lembro exatamente como tava o tempo – o céu totalmente nublado, talvez.  Sei que era dia 16 de maio de 2010, eu ainda era estudante de jornalismo na faculdade de comunicação da Ufrgs e estagiava na editoria de cultura do Jornal do Comercio. Eu tinha viajado para São Paulo a fim de participar do Congresso da Revista Cult e retornado com várias ideias, sempre elas. Estava empolgado, porque sou uma pessoa um tanto quanto passional, e então comecei a procurar outros seres passionais, ou não, que eu sabia que poderiam se interessar com a proposta de trabalhar com jornalismo cultural. Todos nós assinamos uma folha que reproduzo em seguida.



Eles compraram a ideia e, de repente, as reuniões foram se tornando mais frequentes. Foi-se discutindo o conceito, foi-se pensando no layout, foi-se escolhendo um nome. E, do nada: Nonada. E, de repente, já se tinha uma data para o lançamento (um pouco mais tarde, no dia onze de setembro), de repente já se tinham problemas com prazos, de repente pessoas saíram e outras pessoas entraram. Nós não sabíamos o que estávamos fazendo no começo, principalmente em termos de vender um produto. Todos nós éramos jornalistas e pensávamos basicamente na produção do conteúdo, da matéria, do enfoque. Foi um erro em termos mercadológicos, eu admito sem nenhum constrangimento. Porém, a qualidade das nossas matérias ao longo desse tempo não fica atrás de nenhuma grande publicação da área, principalmente aqui do Sul do País. Pode soar pretensioso, e é, mas eu confio tanto nessas pessoas com quem trabalhei, que atesto isso.

O Nonada, entretanto, acabou sendo maior que todos nós que passamos por ele. E olha que, de diferentes colaboradores, nós já atravessamos a marca de sessenta pessoas (acho, não sei, talvez eu não tenha contado direito). Do começo do site, mas eu digo do começo mesmo, daqueles seres calorosos que estavam lá naquele apartamento no Bom Fim naquela tarde de maio, não há mais ninguém. Alguns nem em Porto Alegre estão mais. Outros largaram o jornalismo. Outros sumiram.  Mas o Nonada não sumiu, porque eu estou cada vez mais convencido de que eu não sei fazê-lo sumir.

E, claro, é minha culpa, eu admito. Porque o Nonada também sou eu, ou eu me confundo com ele. É para onde eu volto sempre, meu porto seguro do jornalismo, que me conectou a várias pessoas, que me levou interagir com diferentes conhecimentos e, o mais importante, que ajudou a definir a minha vida .  Eu aprendo tentando, eu tenho ideias a partir de diálogos e trocas. O Nonada proporcionou isso tudo para mim, porque me fez entrar em contato com algumas  pessoas incríveis. E tenho certeza que não é só eu que me sinto assim em relação ao site.

Atualmente, estamos retornando com um novo layout (quase pronto), temos um programa semanal de rádio web, temos uma equipe pequena, mas empolgada e que está trabalhando para trazer mais pessoas e mais novidades ao site – sempre com o mesmo espírito de travessia. Estamos com uma nova proposta de divulgar e trabalhar com a cobertura de artistas novos. Queremos fazer a cobertura crítica de produtos culturais, algo que sempre fizemos bem.

E é bom sentir toda essa vontade novamente.

Quero fazer uma série de entrevistas com jornalistas da área cultural para entender a lógica de cada um e mostrar o seu trabalho para o público. Quero entrevistar escritores. Quero entrevistar desenvolvedores de jogos digitais. Quero entrevistar artistas de rua, quero entrevistar economistas da área da cultural. Quero ter conversas com pessoas que têm ideias diferentes da minha. Quero entrevistar cineastas cults e os não cults. Quero entrevistar músicos de qualquer tipo. Quero escrever sobre o cinema de Hollywood e também sobre o cinema produzido por estudantes. Quero conhecer vocês a partir do Nonada, e quero que vocês conheçam a gente por lá também.


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domingo, 4 de maio de 2014

Mundo

Hoje acordei era alta madrugada.
Tu ainda dormia.

As pernas entrelaçavam-se com o lençol.
O lençol não mais existia.

Teu rosto farol  iluminava a noite,
contornei as linhas da encosta
descobrindo novos mundos.

Nosso novo mundo.

Tua boca brasa contorcia
elixir de ar e
eu era todo átomo
toda partícula

dessa paisagem.

Teu seio manso que me acalma
a volúpia externa.
Tua voz trêmula no ouvido.

Eu sou um pouco disso -
da tua madrugada,
do teu corpo na cama.
No quarto,
no mundo.

O mundo desaparece.

domingo, 27 de abril de 2014

Emaranhados



Três e meia da tarde quando eu cheguei. Vou pegar a cadeira para sentar mais perto. Tudo bem? Tudo, tudo bem. As pernas e os braços finos. Tão pequena, igual a uma criança. Tão cheia de furos de agulhas, soro, exames. Esse aqui foi para ver como tá a glicose, a enfermeira havia dito para ela, que disse para mim apontando para o furo mais novo no dedo. Só nós dois naquele quarto branco e gelado, lá fora estava quente e eu segurava um casaco - eu sempre ando com um. Bota que tá frio. Rejeitei a ideia com a cabeça, mas me cobri ao sentar.

Essa colcha, vó, que colcha bonita. Já é antiga, né, foi tu que costurou tudo, eu me lembro. Nossa, deve ter demorado muito tempo para fazer. E ela fez uma para cada parte da família naquela época. Eu ganhava muito material de linha, mas para emaranhar assim com tanta cor...Hoje em dia não dá mais, o braço não deixa. E sorri de verdade, que é quando se sorri por coisa boa já feita. Que é quando se sorri respingando um pouco de tristeza doída porque não vai se repetir. Queria ter um talento assim, vó, mas eu quase nem sei fazer nada direito, uma colcha dessas, imagina, nem conseguir cozinhar, eu sei. Já a senhora....Eu nunca a havia chamado de senhora, me estranhei, então virei o rosto por um momento, procurando  um tímido abrigo.

Ela abana a cabeça, os olhos pulando, os olhos cansados. Não precisa falar mais vó. Descansa, dorme um pouco. E depois vai comer pra ficar forte e sair logo daqui, né. Nem me fala, filho, nem me fala. Gosta de me chamar de filho e eu, que fui criado praticamente minha vida toda perto deles, sempre acatei com maior profundidade. Vamos ficar quietos, tenta dormir, enquanto eu fico aqui do seu lado. Tira um cochilo. E os olhos fecham.

Os meus abrem mais: consigo agora observar melhor o seu estado. O corpo que se confunde com o cobertor. Retalhos de peças de linha das mais variadas cores feitas manualmente ao longo de tanto tempo; uma pessoa composta por todas essas memórias, uma pessoa toda remendada de novo, indo e vindo do hospital. Cansada e forte. E eu, disposto e fraco, o mais vulnerável da história; não consigo compreender como o tempo pode fazer isso com a gente. O que se pode fazer? Mas a colcha é tão bonita que eu nem sei mais de nada, e parece formar ondas e camadas diferentes ao se escancarar toda sobre o seu corpo. Depois de uns dez minutos ela acorda com um sonho. Quer me contar. Colorido e cheio de vida como essa colcha, deve ser. Acontece que é simples. Estou em casa, andando, cuidando das coisas, tomando banho por mim mesma, sem barulho de máquina a noite toda. É igual a vida. 


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terça-feira, 15 de abril de 2014

Deixa

Deixa eu imaginar a cena. Você está indo embora, descendo a Salgado Filho. Tá chovendo um pouco, bem pouco, mas você gosta de chuva então nem se importa. A sua roupa também não é lá grande coisa, então dá para molhar a vontade. Você está triste, você vai viajar. Você está feliz, você vai viajar. Como posso descrever essa parte? Você quer olhar para trás, mas não vai olhar para trás, porque falou que não iria olhar para trás. Ele também disse que não olharia para trás, mas ele olhou para trás, porque é uma das coisas que ele sabe fazer bem. Ao contrario de você, ele estava com um guarda-chuva, embora odeie carregá-lo. Ao contrário de você, ele não iria viajar e estava todo arrumado para o trabalho. Atrasado? Pouco importa. Só daqui a um semestre tudo voltaria à normalidade, ou talvez não. Deixa eu escrever a cena. 

domingo, 6 de abril de 2014

Manhãs de abril

É como deitar em uma rede no meio da tarde e perceber devagarzinho o vento que parece que alguém que você gosta muito soprou diretamente no seu rosto. E daí, meu amigo, daí, meu amigo, meu amigo, não tem nada ou ninguém nesse mundo comparado a esse tenro momento, talvez só apenas aquelas situações que guardamos na memória como um beijo debaixo das estrelas, um amor fadado ao fracasso que continuamos tentando que dê certo, a felicidade do orgasmo parelho. Mas são poucas coisas, poucas coisas que são tão agradáveis quanto uma manhã de abril fria, uma manhã de abril fria em que se caminha debaixo daquele sol desprotegido e que vagarosamente nos abraça, como se estivesse com pena de nós; e a estrela maior também fica resguardada quando recebe essas manhãs lindas e soberbas de abril e de outono. Se até o sol rei sucumbiu quem somos todos nós para não pregar devoção a essa paisagem tão viva e tão cansada, tão fria e perspicaz, tão calcada na ideia de que o tempo está passando. As manhãs de abril existem para nos lembrar que tudo passou e nós ainda não vivemos o suficiente.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

De se ver

Gosto quando 
ela
tira os sapatos, cansada
e sente os pés  
a primeira vez no dia

E não se importando
beija
o meu rosto em cada
pedaço, o tempo é rés
para nossa mania

Nem até reclamando
perde
encanto ou fica desalmada
sempre disso, ao invés, 
tem amor em demasia

domingo, 30 de março de 2014

Meio que acordado, sonhando

Eu tava meio acordado, meio sonhando. E então comecei a sonhar mesmo porque me vi transportado para a sala da casa dos meus avós. Acho que é dia, está tudo iluminado, não lembro exatamente dos detalhes, mas dos detalhes das sensações. Tava iluminado e eu almoçava com a minha avó, só nós dois na mesa. Minha avó mais jovem, mas não tão jovem quanto eu, talvez lá pela casa dos 50 anos. Parecia mais disposta, com certeza, do que está agora. Agora ela se encontra no hospital depois de passar por mais uma cirurgia e não se tem certeza do que pode ocorrer. Mas agora só estamos nós como nos velhos tempos, quando eu ia almoçar na casa dela e comia a sua comida, que era boa, e continua bem boa, bem cheia de sensações e cheiros que o sonho parecia intensificar. A gente conversa sobre suas preocupações com o cotidiano, das suas preocupações comigo quando eu saio à noite. Você está estudando? O orgulho de ter me mostrado livros e dizer que me ajudou a ler, desde pequeno eu sempre gostei de ler ela dizia, desde pequeno ele já demonstrava saber das coisas. E eu nunca dei bola porque eu sabia que ela me tinha em alta estima, ela gostava demasiadamente de mim; e eu que nunca fui lá muito bom em demonstrar meus sentimentos, aprendi com ela a tentar demonstrar mais. Sempre houve uma facilidade em me ler da parte dela e eu não sei exatamente o porquê, talvez eu fosse muito vulnerável e ela muito perspicaz. Depois disso, fomos para a cozinha que fica do lado da sala, levar os pratos, os garfos, a louça suja para serem limpas. E eu não me lembro exatamente o que ficamos fazendo durante aquele período de tempo. Mas me lembro da cozinha, e posso dizer que parecia diferente de como está agora. Será que meu sonho havia voltado no tempo também? Eram azulejos azuis espalhados pelas paredes e você sabe como isso funciona, uma mesa, armários de madeira com detalhes nos lances de puxá-los na cor prateada. Era uma sensação de pós-almoço no domingo, quando todos nós íamos nos reunir na casa deles, algo que nunca mais fizemos, algo que nunca mais fora a mesma coisa. Acho que desse ano ela não passa. Não sei, é, mas ela disse que me amava algumas vezes na cozinha e eu me lembro que eu já estava visivelmente emocionado, e que tudo parecia tão real porque tudo também era muito confuso. Foi aí que ouvi uma risada muito semelhante ao meu falecido avô que morrera há um ano e meio por problema no coração no hospital, a cara dele morto no velório não parecia nada com ele e eu que não fui vê-lo no hospital, não sei porque, por medo talvez por ele não estar consciente, talvez porque nunca fomos tão próximos. A risada conhecida continuava quando ela entrou acompanhada do meu avô na cozinha normalmente, como se também tivesse acabado de almoçar, como se estivesse estado sempre ali com o prato na mão sujo, levando para a pia. Era algo tão real que eu quase caí da cadeira de susto e ao mesmo tempo não me senti em nenhum momento com medo, sentia a luz clara e forte enquanto ele simplesmente ia embora por alguma porta e é claro que deve ser tudo parte da minha imaginação, das sinapses do meu sistema nervoso arrependido por nunca ter dito certas palavras para ele. Resolvi então ignorar que isso não era a realidade e eu gritei, ou falei alto não sei, para ele ouvir eu te amo, desculpe por nunca ter dito isso enquanto você estava vivo. Foi só isso que consegui dizer, mas tudo parecia tão real que sinto como se tivesse dito de verdade. E o que não é memória, o sonho, a vida se não tentativas absurdas de se conseguir dizer o que você realmente quer dizer?  Depois disso acordei e já era de manhã cedo, levantei e com uma sensação de felicidade e um pouco de tristeza também fui para o computador escrever, escrever, escrever. 

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Um ano e pouco acostumados

Fez um ano e pouco
da última vez.

O mundo gira
e fica diferente
mês a mês.

A gente mede distâncias
conforme o mandato.

Fez um ano e pouco,
da última quarta-feira
e do último sábado.

Um ano e pouco acostumados.

O pássaro como está?
Acuado, no canto
ou liberto, voando.

Para sempre ele canta, entretanto.

Entre atos,
entre casos,
entre falsos abraços.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Ato III – Acordar

Despertou depois de quase três meses dormindo. Sonhou com tanta coisa e teve diversas vidas – em uma delas, inclusive, chegando a idade de oitenta anos, com vários netos; em uma morreu ainda muito jovem: acidente de carro;  outra acabou se casando com a namorada do colégio e tudo era horrível. Mesmo vivendo tanto em quase três meses de sonho acordou sem querer, quando caiu em um buraco e sentiu aquela horrível sensação de perder o degrau da escada. De sucumbir para o infinito, que durou até o momento que conseguiu abrir os olhos e aparecer na sua cama. 

Estava ensopado, o calor de mais de 40 graus acentuava como os dias mudaram desde que ele simplesmente apagou depois de voltar do trabalho. O colchão fedia a merda e mijo e o quarto era só mofo escuro, pouca luz entrava pela cortina semiaberta. Pensava em ver as horas, mas tinha esquecido de como ver as horas. Só conseguia sentir o cheiro de merda e isso o lembrava dos porcos que criou quando criança na fazenda de seu tio, mas não sabe se era realmente sua vida ou um dos sonhos.

Tentou se arrastar para rasgar a cortina e sentir os olhos, mas os seus membros não respondiam a nada, ficou ainda um bom tempo deitado. Ficou ainda um tempo tentando se lembrar como era ser ele, como era seu nome e sua identidade. Os pensamentos ficaram no ar e o ajudaram a levantar, empurrando-o da cama, jogando-o no chão e forçando a se arrastar pelo carpete cheio de pó até a cortina. Depois de muito esforço, conseguiu rasgar um pedaço dela e pode ver a luz invadindo o quarto, pintando a parede com uma cor amarela nauseante. Começou enfim a enxergar algumas pessoas, sua esposa, seus netos, um cachorro que tinha adotado, sua irmã andando de bicicleta.

Quanto mais rasgava a cortina, mais clara suas várias memórias ficavam. Foi aos poucos se levantando, pronto para encarar o banheiro e o trabalho, precisava, enfim, ficar limpo, precisava enfim, voltar a viver alguma coisa – mesmo não sabendo exatamente o quê, ou para quem.