segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Agora de madrugada - postagem temática

"Médico: A senhora vê, os olhos dela estão abertos.
Fidalga: Sim, mas o pensamento está ausente".
Macbeth, Ato V, Cena 1

Mais da metade da madrugada já havia ido embora, quando notei que Cinara evacuara-se de nossa cama. O rádio despertador na estante ao lado mostrava em cor vermelha o horário: três e meia da manhã. Acordei devido a um mau sonho, que tornou a cabeça tão confusa, a ponto de deixar-me altivo bruscamente, como um pássaro que foge assustado após um estopim qualquer. Busquei conforto na visão de repouso de minha esposa, mas o que encontrei foi o abandono cruel dos lençóis, que nada mais preenchiam. A porta do quarto posicionava-se milimetricamente encostada, como se um pequeno vão fosse deixado propositalmente. Dele, um feixe de luz atravessava-se soberano, denunciando um possível rastro de Cinara.

Os olhos minguados mal haviam se acostumado ao escuro que a madrugada ocupava com tanto vigor. Foram necessários esforço e tempo para levantar da cama, vestir o chinelo preto velho e mover-se ao encontro da porta. No caminho, não pude deixar de notar – mesmo com o sono, mesmo com o aperto suave das pálpebras invadindo meus olhos – pequenos pingos vermelhos formando um caminho. Vermelho cor escarlate, possivelmente ainda quente, encostado no chão, morto, com todas as suas diferentes substâncias e composições químicas. Os pequenos glóbulos no chão apontavam que a sua fonte estaria no banheiro. Não precisei de meio segundo para deduzir o que estava acontecendo.

Corri ao banheiro, mas estranhamente a porta estava chaveada. Joguei berros através da madeira seca, recém pintada de verniz, para ocultar sua velhice, mas não obtive resposta em nada. Nem grunhidos eu ouvia, reclamações, gritos de dor. Nada. A madrugada preenchia o vazio entre nós, e os minutos rondavam os meus pensamentos.

Apenas sete semanas que descobrimos da gravidez. Inesperada, mas não mal vista, casamento de cinco anos, situação regular de ambas as partes. Eu estava feliz, eu estava morno. Talvez um filho pudesse mudar a nossa situação. Tudo isso me atravessava, enquanto eu batia cada vez mais forte na porta que dividia a minha futura felicidade, ou melhor, a nossa futura esperança de felicidade.

Foi então que um estrondo contido, na parte interna da porta, respondeu aos meus suplícios. Esbocei uma reação homérica, quase teatral, para derrubar a porta, mas a falta de força, impediu-me de prosseguir. Lá estava eu, preso do lado de fora da minha felicidade, observando tudo sangrar aos poucos. Provavelmente do outro lado, Cinara havia finalmente cedido a hemorragia, desmoronando, batendo a cabeça e destruindo a nossa chance de melhorar como casal.

De repente, a porta do banheiro, assim como a cortina de um teatro finalmente se abriu, e Cinara, como a personagem principal de uma peça saiu sem me olhar, sem me dar a mínima satisfação, e caminhou de volta ao quarto. Observei à distância os seus passos certeiros e confiantes. Percebi também um corte recente, aberto, pouco profundo na sua mão esquerda.

Acompanhei-a de volta à cama. A tapei novamente com os lençóis, que agora voltavam a cumprir a sua mais primordial função. No rádio relógio meia hora já havia se passado. O bebê ainda continuava no seu lugar, e conseqüentemente a possível felicidade ainda estava garantida. Então deitei na cama, averigüei uma última vez o rosto de Cinara, virei para o lado e dormi.

sugestão: mudanças

7 comentários:

L E O disse...

párra!
Que lance angustiante.

Cheguei a pensar que tu ia levar praquele lado Rubem Fonseca da literatura. :P

Mariana disse...

Se a Cinara tivesse perdido o bebê, eu não ia mais te ler hehe
=D
Palavras muito bem escolhidas.
bjo!

gregtest disse...

Ficou muito boa a construção do 'suspense', o ritmo que tu conseguiu estabelecer.

Anônimo disse...

Muito bom. Personagens verticais construídos em tão pouco espaço. Tu estás seguindo a linha dos melhores hehe.

Vinicius disse...

"Que lance angustiante." (2)

Pam disse...

ótimo, ótimo!
a surpresa no final.. o inesperado.. te coloca junto aos gênios!
poucas pessoas conseguem fazer isso de modo não clichê e tu fez isso em uma postagem temática!
remarkable man, rafael!!

muahhh!

Bruna Ghiorzi disse...

Que lance angustiante (3)!

SE levasse praquele lado Rubem Fonseca não seria exatamente um problema ehehehe

Mas o texto é ótimo do jeito que está, muito agradável de ler e com um ritmo realmente atrativo!

Obrigada pela dica lá no post. Gostei muito de participar das postagens temáticas.

Abração!