Meia noite do dia 25 de Julho. Carlos dera entrada na UTI há quase duas horas, foi de ambulância que ele veio. Sangrando por quatro furos de bala, pequenos orifícios apressando a morte. O que ele fez? Não era bandido, assassino, ladrão. Era porteiro. Porteiro de prédio médio em uma cidade média, num bairro médio. Médio é uma boa palavra para catalogar as pessoas. Podemos ter certeza que ele era um homem médio. Mas não de estatura, pois alcançava quase um metro e noventa; não era forte, corpulento talvez. Alguém soprou que ele poderia defender a entrada de um prédio, e o homem alto acreditou. Mas as quatro balas não estavam nem aí. Não se importavam com seu nome, sua idade, ou seus filhos que ele fazia a questão de levar todas as manhãs para o colégio antes de ir trabalhar. As balas só queriam o sangue. Nem se pode culpá-las, afinal de contas poderia ter sido qualquer um. Mas por que ele escolheu ser um porteiro médio?
‘A gente nunca sabe o que pode acontecer’, diz a esposa, segurando uma bolsa rasgada entre as mãos, espremendo-a e depois soltando, depositando toda a raiva no pequeno compartimento. Ela e os filhos aguardavam na sala de espera algum prognóstico. Relutei em ir ao seu encontro, mas eu tinha que me manter perto, pois uma ótima pauta poderia estar nascendo. Tinha que roubar alguma declaração, descobrir o que realmente havia se passado. Algo assim teria que aparecer no jornal depois. Poderia até virar um livro. Seria o meu texto, algo trágico, para que eu fizesse um retrato sensível e humano. Não é desse jeito que as coisas funcionam?
‘A gente nunca sabe o que pode acontecer’, ela repete calmamente, mas quase estourando pelos olhos. Eu, anotando cada palavra, observava ali uma futura mina de ouro. Os filhos ainda pequenos, só aumentariam a dramaticidade. “A vida é estranha, as coisas podem mudar do nada”, ela dizia, chorando e conversando comigo, talvez achando que eu fosse da polícia, ou algo assim. As coisas só melhoraram depois que chegou o médico. Imagino até como escreveria essa cena, talvez o parágrafo final do meu texto:
“O cirurgião finalmente chega à sala de espera, e é como se todo o hospital ficasse em silêncio. Ansiando o resultado, a esposa de Carlos retira os filhos da sala, eles seguem com a avó para um recinto ao lado. O cirurgião rotineiro que atendia naquela noite fala quase que prosaicamente, como se dissesse um “bom dia” ao seu colega de trabalho, que infelizmente Carlos, o porteiro, o homem alto, estava morto. Não foi como se o hospital todo tivesse implodido, mas a analogia cairia bem a esposa do falecido. Falando coisas sem sentido ela caiu aos poucos, desmanchando por sensações.”
Obs: Até, Porto Alegre!
Um comentário:
Realmente uma narrativa fria e calculista, e sensível, muito. Tri legal, tchê.
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