segunda-feira, 28 de junho de 2010

Cinzas de mais de uma meia hora - Postagem Temática

"... - O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.

- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?

- Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino."

Pneumotórax de Manuel Bandeira

São os corredores do hospital que fodem com os pensamentos, especialmente à noite, quando ficam praticamente vazios. Não há barulho, nada. Há sim muitas paredes brancas opressoras no caminho para a sala de Raio X. Lá uma senhora não tão senhora comenta sobre como é trabalhar praticamente sozinha em um domingo quase de madrugada. Toda de branco ela me dá ordens de poses forçadas para as fotos dos meus ossos. “Não sei porque vocês têm medo de hospital. As pessoas morrem nessa sala aqui atrás e eu não tenho medo”, diz apontando para mais uma maldita parede branca. Atrás provavelmente se encontra o necrotério do hospital. Ela diz isso com um pouco de riso nos cantos do lábio. Mas ela tem 25 anos naquele espaço e como qualquer pessoa sã se acomodou com a morte. Tento rir do que ela diz para deixar o ambiente mais favorável, mas não consigo abrir a boca o suficiente. E ela não diz mais nada. Não rio também porque a tosse atrapalha a cada minuto, batendo no peito, chutando a minha boca, expelindo ar forçado para fora. Não era só o ar, era também um catarro – ainda branco, mas viçoso – que ficava acumulado na boca, esperando para ser jogado fora. A sessão de fotos acaba e ela me pede para esperar. Esperar meia hora com outros doentes, na sala de aguardo. Uma televisão estava acomodada para divertir os enfermos, nela algum programa de auditório sorteava presentes em um jogo de respostas. Eu incomodava todas as pessoas ao meu redor com as minhas tosses, ofuscando a voz do apresentador. Uma senhora em uma cadeira de rodas me olhava do pé a cabeça, dei algumas olhadelas de canto para ela também. O que se pode fazer. O que se pode fazer contra uma pessoa em uma cadeira de rodas? Não há argumento.


Era meia noite e meia quando o maldito médico começou a chamar os pacientes. Mais de duas meias horas já haviam passado e nada dos meus exames. Ao meu lado uma simpática garota não tirava os olhos de um livro, mal consegui ver o nome, mas era um livro de poemas. O único livro de poemas que eu havia lido era de um tal de Manuel, Manuel alguma coisa, dado por alguma antiga namorada. Mais meia hora e nada, mais meia hora e é uma e meia da manhã.


Meia hora, cadeira de rodas, guria lendo o livro. Sono. E não há ninguém na sala. Ninguém na sala? Ouço uma voz.


“Manuel Bandeira!”


Olho para a sala ao redor só para confirmar que não há mais ninguém. Esse não é o meu nome. Esse é o nome do Manuel, aquele Manuel do meu livro. A porta do consultório está aberta, na televisão agora passa algum culto para evangélicos fervorosos que exorcizavam pequenas almas em busca de paz interior. Vou atrás da porta, porque de qualquer forma não havia mais ninguém por ali e muitas meias horas já haviam passado.


“Olá”, o médico me recepciona manda eu me sentar. Ele tem aqueles estetoscópio pendurado no pescoço. Parece velho e de saco cheio, usa um bigode branco sem barba nas bochechas, só o bigode branco. “


“Então senhor Manuel Bandeira, faça o favor de tirar a camiseta e sentar”, ele diz.


“Meu nome não é Manuel Bandeira”, respondo.


“Tem certeza? É o que está na ficha”, diz.


“Claro que tenho certeza é o meu nome, deixa eu ver isso..” A ficha carregava uma foto dos meus esqueletos e o nome Manuel Bandeira, uma assinatura.


“Diga trinta e três”, ele ordena.


“Para quê?"eu respondo, indignado. O relógio na parede branca em cima confessava o horário: 3 e 30 da manhã.


“Diga trinta e três”, mais uma vez.


Trinta e três . . . trinta e três . . . trinta e três . .”


“Respire agora, fundo depois solte”.


Fuuuuuuuuuuuuuuuuuummmmmmmmmm


“O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.



“Como assim? Não pode ser. Só tenho tosse”



“O senhor tem meia hora de vida”.


“Meia hora de vida? O que posso fazer em meia hora de vida?”


A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.”


“Essa não pode ser a única coisa a fazer”, respondo para ele.


“Não, você também pode parar de tossir”


“Posso o quê?”


“Para de tossir!”


A cadeirante está do meu lado me empurrando com força e gritando para eu parar de tossir, e a sala está cheia novamente. Ela reclama que não consegue ouvir o apresentado metido a inteligente e bonito, fazendo perguntas para a plateia na televisão. As pessoas me olham graças a um ataque de tosse, de sono. E então eu volto aquelas paredes brancas cheias de pessoas e com muitas meias horas faltando.


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Sugestão de tema: filme que lhe marcou

3 comentários:

Mariana S. disse...

Me tirou o ar.

Sr. Apêndice disse...

Excelente texto! Genial a alusão (bela homenagem diga-se de passagem) ao grande Manuel Bandeira! Muito bom mesmo, parabéns! Abraço

Agda disse...

nossa, muito legal!!