quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Aquele que corta o tempo

É só tocar música que Anna lembrará. Fraca e alegre, é bem assim que ela vai se sentir, mesmo que dure apenas uma fração de segundo. A melodia em quatro tempos, todas as sete notas musicas em perfeita ordem harmônica. Vai formar com os dedos no ar o primeiro acorde que tocou, logo após aprender as diferenças de tom. Dó ou Sol? Não dava para esquecer. As aulas de violão lhe marcaram. Era algo difícil e, sobretudo, trabalhoso. Seus dedos doíam por qualquer arranhão, por qualquer composição diferente em que fosse embarcar. Senão fosse o professor, senão fosse aquele professor em específico.


Costuma lembrá-lo nas noites em que não consegue dormir, onde observa o agora empoeirado violão atirado no canto. A partir dele vai remontando aos poucos a imagem ainda visível do professor. Era mais velho e moreno. “Cor do violão”, ela pensa, seus olhos também lembravam a madeira marrom clara do instrumento. “Por que eles nunca me observavam?”, continua em tom alternado, deitada na cama de solteira do seu quarto na casa dos pais, completamente sozinha. Seus pensamentos rememoram a mão afiada do professor tocando o instrumento que tanto lhe dá prazer. Apertando suavemente cada casa de cada diferente corda, formando vários acordes ao mesmo tempo. “O som é só uma eterna variação do tempo”, ele costumava lhe dizer, “basta tocar nos lugares certos”.


Anna puxa o violão do canto, senta na cama e começa a acariciá-lo, desde o alto do braço, cumprindo a rota dos entornos, deslizando com seus dedos até o corpo. Como se tocasse o professor, como se ele a tocasse. Roça o corpo do violão no seu corpo coberto pela pele branca quase pessêgo, passando a mão entre as cordas, entre as suas pernas. Movimentando-se, os dois acabam se enrolando com o cobertor. Viram em sentidos opostos, grudam e se desgrudam. No mesmo ritmo, como se pulassem o muro de uma casa, roubando alguma fruta. As seis cordas vibram por entre as mãos, por entre as pernas, criando música e tempo.