quinta-feira, 5 de março de 2009

Das mãos

"O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja"
Augusto dos Anjos


10 para as três da manhã. O táxi movia-se rapidamente pelas sinaleiras, parecia não haver diferença entre as três cores: todas teriam firmado um acordo de livre passagem. Carina sentava sozinha no banco de trás. Ela, a bolsa, a roupa e os pensamentos. O cheiro da bebida e dos cigarros emanava sob a pele, como um suor que escorre depois de uma corrida desnecessária.
Em meio a tontura que a vodka lhe aplicava, perguntou para o táxista, “Já estamos perto, moço?”, baixando a voz devagar e entoando o som do vocativo como se tivessem uma longa cumplicidade. Não obteve resposta. Ou melhor, conseguiu notar, mesmo embriagada, que o carro diminuía gradativamente a velocidade. Ora entrando em ruas que ela nunca havia passado, ora quase parando e, em segundos, acelerando bruscamente.
Ela não conseguira ver o rosto do motorista. Sua posição impossibilitava a vistoria dos seus olhos; podia ver as mãos: brancas, delicadas e de aparência surpreendentemente limpas. Isso a deixou tranqüila por um tempo, talvez fosse um taxista iniciante, inexperiente. Misturou-se com o estofado e sentiu que precisava de um cigarro, mas não tinha fogo. Seus olhos abriram arregalados quando a mão vinda da frente esticou um isqueiro. Ela sorriu. A mão foi embora.
Passou a criar uma confiança com aquelas costas, cobertas com uma camiseta escura, assim como a mão branca, amiga, convidativa. Logo, relaxou, passou a pensar no trabalho, na roupa que iria vestir amanhã e também tinha a estranha saudade de quando era criança, de sua irmã mais nova que não via há tempo. Por onde andaria? O sono vem com as lembranças. A cabeça respondia a cada pensamento com uma leve inclinação para a janela fechada. Um travesseiro improvisado. Mas ainda não dormia.
De repente o motor parou. Meio tonta não conseguia se mexer direito. Alguém abria a porta ao seu lado. Palavras foram sussurradas, mas não chegaram ao seu ouvido. Tomada pelo ombro, primeiro com gentileza, depois a segurando com força, comprimiam sua boca, a puxando com violência do carro.
Carina se sacudia e tentava gritar, seu corpo pequeno, o salto alto preto, a calça jeans justa, a maquiagem, nada disso ajudaria. Um pano molhado invadia suas narinas. Podia ver a mão do homem, também delicada, branca. As mesmas mãos. “Por Deus, as mesmas mãos?”.

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