sábado, 2 de fevereiro de 2008

Vestido com chuva (crônica)

Choveu levemente na última sexta, daquele tipo de gotas finas e suaves que molham sem querer, suavizando, quase que, vestindo o corpo do transeunte. O céu parecia nem tê-la chamado – talvez São Pedro estivesse mais feliz com um possível sol –, mas ela foi aparecendo devagarzinho, do nada, mansa e maliciosa mesmo, como se falasse que estava com saudades e que precisava de nós, ao menos eu me senti assim. Quando caminhava sob , e pensava sobre ela, notei que esses pedaços minúsculos de água, continham, também, uma quantidade enorme de outras substâncias, cheias de vida e de destinos diferentes, com diversos tipos de missões constituídas pelas nuvens, a fim de chegarem aos pontos mais remotos da terra e contribuírem com os seus corpos para o ciclo da vida. Para se auto construir e para nos reconstruir. A água nos define e, mais do que isso, ela nos explica, produzindo-nos pensamentos, idéias, e a capacidade de seguir em frente. E era isso que eu estava fazendo: indo ao encontro do meu ônibus para mais uma aula, chata, desnecessária e impessoal. Mas foi nesse momento que a chuva apareceu de canto e, mais ou menos, 200 metros de distância, que me separavam da parada, foram varridos por pensamentos misturados com H2O. Quem sabe, a água até tenha invadido os meus poros, corroendo as minhas idéias infectadas de teorias que eu não pedi para estudar, diluindo-as e tornando a minha cabeça um lugar melhor para eu viver? Acabei imaginando mais que isso, pensei que se até a nuvem tem um plano de vida – fugaz, mas um plano – para cada gota que saí dela, de repente, a água poderia ajudar a dar-me uma razão, ou a simplesmente purificar os meus medos, traduzir os meus desejos e ambições desconhecidas.
É fascinante como cada gotícula está programada para furar o concreto duro da calçada, invadindo-a, procurando a terra, dando-lhe vida, possibilitando que uma diversidade absurda de seres se alimentem das raízes de plantas, oportunizando chances a todos de participarem desse enorme ciclo do ambiente. E essa mesma substância também nos propicia a nossa redenção. Enquanto sentia meu cabelo se afofar, sendo por fim vencido pela elasticidade da água, percebi que toda a vida, ou falta dela, pode justamente ser explicada pela aquela sensação da garoa percorrendo o rosto. Dei-me conta que todos somos partes desse grande panorama, uma enorme colcha de sentimentos diferentes que precisam ser curados, algumas dores que nunca foram bem explicadas, sensações nunca ditas, medos inexatos. Assim como cada gotícula de água tem seu lugar no mundo, todos os nossos pensamentos devem ter um lugar e um objetivo, dentro de nós. A chuva de fim de tarde mexeu com tudo isso. Embrulhou o meu estômago. De repente os carros passavam lentamente, diminuíam as luzes parecendo entender o meu pesar, e o vento fazia a chuva sempre cair em linha reta, como se marchasse ao meu lado – e com o meu corpo – os passos que me obrigavam a voltar a minha vidinha cotidiana de estudante normal. Agüentando as horas, com o intuito de tentar aprender algo que eu não sei se é relevante para o meu futuro. Eu nunca poderia ser como chuva, mas eu entendi tudo que ela queria me passar.
Uma pequena quantidade de vida estava contida em cada gota, e eu, que não sentia muito da minha vida, fiquei de braços abertos por cinco minutos, caminhando bem devagar, deixei me confortar, molhar todo. Achei que se apanhasse chuva o suficiente, seria uma nova pessoa: completo de objetivos e absolutamente certo das minhas escolhas e decisões. E de repente uma serenidade acolhedora, que toma a gente às vezes, acertou-me, e eu sabia que por trás daquelas nuvens meio pretas ainda estava o sol, que continuaria a brilhar, majestosamente, sob todas as criaturas da Terra. Não fiquei mais com tanta dúvida, porém, também, não peguei o ônibus aquele dia. Permaneci caminhando mais um tempo até surgir as estrelas, suas luzes reluziam na garoa produzindo uma cor prata em cada singela gotinha, foi então que eu me senti tão pequeno perto delas, tão mirrado em minha interioridade, tão cheio de problemas que eu mesmo invento – e que fundo eu sei resolver e não faço –, que sem titubear, talvez, também, meio atordoado pelas constelações e vestido pela sensação embasbacante da chuva prateada, eu decidi simplesmente parar de refletir muitas pequenas coisas, e ir para casa deitar e dormir.


Texto produzido para a cadeira de comunicação em língua portuguesa 2, uma crônica que ninguém sabia muito bem em que tipo encaixar, acabou ficando na metafísica - filosófica.
Enfim, espero que gostem. =)
às vezes uma chuvinha mexe com a gente, não?

Um comentário:

Anônimo disse...

Talvez a chuva seja o fenômeno da natureza mais humanizado. Ou talvez sejam algumas pessoas que a vêem com mais sensibilidade. É, acho que é isso. Tem gente que vê tudo passar tão rápido - o que é uma pena, né, pois a chuva mexe mesmo com a gente.