terça-feira, 5 de maio de 2009

Sala dos escritores Portugueses e Brasileiros – Final de 2008

Um homem visivelmente nervoso, vestido a rigor, chega próximo a grande porta de madeira antiga – empoeirada pelo tempo – e a abre. Ao adentrar a extensa sala, preenchida por várias estantes, é surpreendido pela voz experiente de um velho mulato brasileiro, também elegantemente trajado, e que se encontra sentado à poltrona, na ponta de uma comprida mesa. “Está adiantado para a sessão de hoje, senhor Pessoa. Puxe uma cadeira, os outros ainda não chegaram. Agora, me diga, como tem passado?”, pergunta o escritor de sotaque carioca. O português se senta, apresenta uma expressão desanimada escancarada no rosto e diz: “ando muito confuso, os últimos acontecimentos estão acabando comigo, não entendo o novo acordo, as regras não podem mudar assim”. Enquanto fala, ele mexe os olhos, procurando todas as obras clássicas da literatura de seu país enfileiradas em uma estante gigantesca, que se estende a uma altura em que não é possível terminar de se enxergar. “O que acontecerá com a minha pátria, a Língua Portuguesa, Machado?”. O velho de olhos de ressaca se levanta, sorri ironicamente, observando outra estante gigantesca que se encontra ao lado da anterior, com todo o acervo de livros publicados em seu país e solta, “ao contrário de você, não vejo um problema real nisso, será bom para os dois países. As duas ortografias vão entrar em acordos, cede-se um acento ali, uma regra aqui, mas as palavras vão sempre existir”. Enquanto Machado tece o discurso, Pessoa imerge cada vez mais em si, como se esperasse da língua o que ela não poderia lhe dar no momento: conforto.

“Não há respostas simples e você sabe muito bem disso”, continua o brasileiro, com uma voz calma e afiada, desafiando a postura do escritor português e prossegue, “Os livros, bem, eles viraram sinônimo de dinheiro, todo mundo sabe que a economia subverteu a literatura...”. Machado não pôde continuar sua explicação, um Pessoa que não era mais só uma pessoa – e sim talvez três, ou talvez 30 – pulou da cadeira, deixando cair o chapéu. Pôs-se de pé rapidamente e soltou um grito misturando todos os seus diferentes timbres. O brasileiro surpreendeu-se, ainda não conhecia aquela face do companheiro de reuniões literárias, justo ele que sempre fora tão reservado, tão talentoso, mas tão introvertido. De alguma forma, ele se dera conta que era tarde demais: Pessoa já se encontrava desfragmentado.

Foi então que o português recolheu seu chapéu, e fitou fixamente Machado, soltando, “sabe o que mais me incomoda? O que descontenta todas as pessoas em mim, e tudo aquilo que eu dia fui, e que ainda sou?”. O escritor brasileiro não sabia o que dizer. O ato inesperado havia lhe surpreendido. Ele estava encurralado. Acabou optando pelo em silêncio, esperando a reação. Pessoa, então, bufando de raiva logo gritou, subindo na cadeira: “O sentido! O maldito sentido! A ortografia é um certificado de existência de cada país, e ela não deve ser alterada! Os meus livros não podem ser modificados, porque o sentido, o sentido não seria o mesmo. Viva a minha pátria, a língua portuguesa!”.

Machado discordava de tudo em Pessoa, desde o momento em que ele subiu na cadeira, até a última letra de seu discurso idealista. As palavras agora lhe voltavam calmamente. Exigiu que descesse do assento o mais rápido possível e que fosse mais sensato. “O sentido das palavras não mudará, e ninguém mexerá nos seus poemas, meu amigo, agora desça e me escute”, disse. O brasileiro lhe deu a mão, como se assinasse uma trégua, como se lhe oferecesse ajuda para enfim voltar à realidade. Mas não foi o que aconteceu. Num golpe de cólera, Pessoa o empurrou, jogando-o ao chão. Ao mesmo tempo, o escritor luso também despencou, colidindo com a estante dos livros portugueses – seus conterrâneos –, e atirando boa parte das publicações ao chão. O impulso fez várias das obras brasileiras seguirem o mesmo caminho. Mesmo que eles não quisessem, agora estava tudo misturado. Os corpos velhos estendidos no chão, cobertos pelos livros das duas nacionalidades. As diferenças encontrando-se, quem sabe criando vida nova, quem sabe, desse modo, construindo novos sentidos.

* texto enviado para um concurso

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