segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Epifanias - Fungo nos olhos

Cap. II

E eu só me arrependo de não ter comprado antes. A droga da escuridão, por que a velhice traz dessas coisas? No meu caso não foi bem o tempo o vilão, mas sim a doença que invadiu o corpo fraco. O fungo no olho, explorando o cansaço veio para comprovar o que eu já sentia há tempo: atestado médico de cegueira. E tudo que eu conseguia pensar, enquanto o médico falava sobre possíveis tratamentos é que nunca mais poderia dirigir novamente. Meu carro vermelho tão vibrante, tão, assim, novo. Nem acabei de pagar as prestações e já perdi a chance de sentir aqueles pneus? Familiares vieram me visitar, primos antigos que eu não via há tempo. Como se todos quisessem ser vistos, talvez pela última vez. É tão chato, tão triste e tão chato, o modo como eles me olham.
Ando dormindo cedo. Ou melhor, deitando-me cedo, remexo-me na cama e salto, em um estalo, como se o mundo fosse explodir na próxima sinaleira. Realmente é difícil dormir, quando se vê tudo apagando durante o dia. Cores cinzas tornam a paisagem mórbida, coloram-se, alternando entre uma claridade estranha e um preto descomunal. Visto qualquer roupa e resolvo sair de casa. É muito cedo, naquela hora que a noite deseja ir embora, mas a luz não é forte o suficiente. Assim como os meus olhos. Droga. Pego a chave do carro e sem pensar saio, encontro meu carro, mas é difícil de entrar, ligo o motor mais por intuição do que por saúde, desbravo a frente de casa e caio na avenida. Quase ninguém passa por lá agora, posso sentir o carro, o motor novo, o barulho, o cheiro de óleo, tudo trabalhando junto. Meus anos de economia para tê-lo. Tudo escuro entre as sinaleiras, não há ninguém agora mesmo, pouca gente na rua. Acredito que não haja problema dar uma última volta.

link do primeiro capítulo: http://contagens.blogspot.com/2008/11/epifanias.html

Um comentário:

Camila. disse...

incrível como tu consegue descrever bem as cenas.
muito bom, Rafa!!!
beijoos