“Não me mexi na cadeira quando percebi que minha mulher abandonava o seu canto, não ergui os olhos quando vi sua mão apanhar o bloco de rascunho que tenho entre meus papéis. Foi uma caligrafia rápida e nervosa; foi uma frase curta que ela escaeveu, me empurrando o bloco todo, sem destacar a folha, para o foco dos meus olhos: “Vim em busca de amor”, estava escrito, e continuei com os olhos pregados na mesa. Mas logo pude ver sua mão pegar de novo o bloco e quase em seguida me devolvê-lo aos olhos: “Responda” ela tinha escrito mais embaixo numa letra desesperada, era um gemido. Fiquei um tempo sem me mexer, mesmo sabendo que ela sofria, que pedia uma súplica, que mendigava afeto. Tentei arrumar (foi um esforço) sua imagem remota, iluminada; provocadoramente altiva, e que agora expunha a nuca a um golpe de misericórdia. E ali, do outro lado da mesa, minha mulher apertava as mãos, e esperava. Interrompi o rabisco e escrevi sem pressa: “Não tenho afeto para dar”, não cuidando sequer de lhe empurrar o bloco de volta, mas nem foi preciso, sua mão, com a avidez de um bico, se lançou sobre o grão amargo que eu, num desperdício, deixei escapar entre meus dedos. Mantive os olhos baixos, enquanto ela deitava o bloco com calma e zelo surpreendentes, era assim talvez que ela pensava refazer-se do seu ímpeto.”
Excerto do conto "Hoje de Madrugada" de Raduan Nassar.
Nada a declarar, apenas queria que comentassem o que acharam...
Eu ...
achei essencial.
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