segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Três delírios de livros em um mês de férias

O trago de ontem à noite me deixou enjoado e machucado, que porra mesmo. Não deveria ter apostado com o Tobias e o Manuel, aqueles viados, quem beberia mais. Não consigo dizer não para um desafio, ainda mais um desses. Começamos a entonar as cachaças, os destilados, as vodkas perto da meia noite. E era duas da manhã quando Manuel, o mais fraco, caíra, primeiro vomitando todo o assoalho da casa de Tobias e depois desabando quieto no chão, distorcendo - se e enfim, acalmando-se gradativamente, ficou ali mesmo, formando uma letra “S”. Tirei os olhos dele e fixei no meu adversário, agora me bastava vencê-lo. Poucos triunfos foram me guardados para essa vida, mas nunca perdi na capacidade de virar o copo. Mais meia hora adentro, os olhos se encarando, cada um tentando revidar. A luz amarela da lâmpada velha da cozinha podre era um pequeno sol que nos fazia derreter a cada dose de tequila. Perto das quatro da manhã, com as pernas já cambaleando, lutando contra a bebida que desejava subir para o cérebro, observei Tobias cair, dançando alguns segundos sozinhos, falando besteiras sem sentido e desmoronando em cima de Manuel, sua cabeça de forma de pêra caindo na bunda branca e flácida do amigo, fedendo juntos, loucos juntos. Eu já quase os acompanhando também, não poderia me dar por vencido, peguei meu casaco, comi um Misto Quente da geladeira, apaguei a luz da casa de Tobias e saí como um grande campeão para a rua, chegando no pátio com grama verde limpa. O cachorro de Tobias fazia um pequeno serviço perto de uma árvore, era um bicho estranho e bizarro, fui tentar brincar com ele e acabei tropeçando em cima do pobre animal: caí adormecido-bêbado-idiota.
Sempre tive dificuldades com você, meu pai, resolvi escrever-lhe esse email com todas as minhas mais repletas angústias e medos, porque meu psicanalista falou que seria bom, já que não tenho muita intimidade com o seu olhar. Acredito que esse seria o nosso primeiro passo para uma relação normal, não sei. O primeiro processo. Será difícil perdoar os anos inoperativos e imperativos do seu reinado sobre a minha pessoa, construindo minha personalidade fragmentada, não respeitando as minhas escolhas, influenciando sobre cada mínima decisão do meu subconsciente, como se eu não pudesse tomar nenhuma resolução de minha autoria. Um juiz de custódia do meu eu. Causador do meu excesso de pronomes possessivos nas frases. Deveria ter escrito uma Carta ao Pai, mas não tive coragem, era algo tão pessoal. Não quero nada disso com você agora, caminhemos primeiramente pela informalidade. Talvez a culpa não seja sua, e sim minha. De repente, eu era uma criança muito fraca para te entender, não perceber a sua capacidade de educação, seus medos que se viraram contra mim, talvez eu devesse ter suportado tudo isso, aguentado quieto no meu canto, e esquecido. Mas dei azar de nascer com esse excesso de sentimento, de sentir por todos os poros da minha pele. E você machucou-me me pai. Por quantas vezes não chorei por ti, não sabendo como agir? Até que esse misto de emoções foi virando desprezo e abandono, e por que isso, pai?
Entrei no ônibus. O Cobrador parecia irritado, já sabia o porquê: era dia de passe livre. Muita gente no veículo, ninguém se respeitando, criança gritando pela boca, pelos poros, pelas mãos e pelas mães, velhos chatos e ranzinzas, reclamando de tudo, o sol escaldante do maldito fevereiro do carnaval e para completar aqueles três malucos lá atrás. Pareciam só querer confusão, fazendo barulho, atrapalhando todos os outros. Que merda, penso eu. E não tiro os olhos do estressado cobrador, parecia um cara bem nervoso, irritado, sangue quente, como se fosse estourar com o próximo que passasse pela roleta. O motivo, claramente, são aqueles três no fundo do ônibus, estragando a sua condução, o seu meio de transporte e de trabalho. Não se deve mexer com o sustento de um homem. Suado ao extremo, o cobrador movia a cabeça para todos os lados, sempre procurando com os olhos os três elementos. A barulheira continuava e só parecia mais forte, o sol também, como se o ônibus fosse ao encontro da grande estrela quente. Então foi em um segundo que tudo aconteceu, o pulo do cobrador sobre as pessoas, como se se jogasse num oceano composto de pele humana e de suor que o separava dos três indivíduos. Navegou pelo emaranhando de corpos e encontrou o grupo, puxou uma arma que trazia escondida e atirou a seco nos três indivíduos, foi cruel e rápido, acho que não teve dor.

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