O amigo pode não acreditar, mas é a pura verdade: não há
nada mais fiel nesse mundo que um cachorro. É claro que recordo como o Faísca
entrou na minha vida, mas o que eu quero mesmo é contar como ele saiu. E, para
isso, vou ter que pular alguns punhados de anos. Contar é isso também, não?
Posso ir e voltar a hora que eu achar melhor. De acordo? Às vezes quando vou
dormir tarde da noite, beirando às duas da manhã, quase que posso sentir o
ronco do velho Faísca deitado ao pé da cama, me ajudando a vencer as noites sem
sono. Não sou bom em descrições, mas é difícil esquecer um amigo como ele. De
porte médio, o pelo raso e claro, Faísca virou Faísca, porque corria muito:
ardia os olhos quando ele se metia a sumir atrás de um daqueles pássaros do
campo. Mesmo depois de velho ele ainda podia subir um monte mais rápido que eu.
Faísca. Faísca durou uns 15 anos, ou melhor, viveu, porque animal não dura,
permanece, vive. Você sabia que os
cachorros podem ter as mesmas doenças que os homens têm? Na época, eu não tinha
muita ideia que cachorro também podia ter câncer, ataque do coração; não,
achava que cachorro tinha doença de cachorro. Quer ver Faísca era mais homem
que muito homem por aí...Não sei, mas sabia que havia algo errado, quando ele
começou a ficar quieto, apenas em cantos de casa, quase não me acompanhava mais
em meus passeios diários pela propriedade. Faísca, velho Faísca, por onde anda.
Visitamos um médico de animal que recentemente tinha se mudado e ele
diagnosticou câncer, mas como podia ser câncer se essa praga só dava em ser
humano. E ainda era um câncer que já tinha espalhado, pelas patas, pelo
fígado...Não haveria muitos dias, mas ainda haveria muita dor, me contou. Enquanto
Faísca me olhava quieto e eu olhava para Faísca, já em casa, eu tive a sensação
de que só eu iria lembrar do Faísca e ninguém mais. Mal se lembram de familiar
depois que morre, imagina de um cachorro. Ninguém vai lembrar. Resolvi, então, aliviar
o velho Faísca que já chorava de dor até dormir. Escuta bem, porque nunca mais
vou contar isso: peguei no colo e parece que ele já sabia, de certa forma, pois
me olhava com os olhos bem maiores que o de costume, olhos de quando era
filhote e voava pelo pátio. Caminhamos até o horizonte da minha propriedade que
dava em uma grama rasa que ele costumava comer quando jovem e dormir quando
mais velho. Depositei-o ali e puxei o revólver que sempre carregava comigo.
Naquela época, não haviam os tais remédios para aliviar a dor, o que mais eu
poderia fazer, o que mais. Nunca mais esqueci aqueles olhos antes de atirar
entre eles, antes de não mais emitirem nada. Não eram olhos de súplica, eram de
afeto, carinho. Olhos que eu nunca esqueci e que agora, espero, você também não.