sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Teoria número dez: sobre os instantes definitivos. (medos insuportáveis)

Eu ainda continuo aqui, enquanto vocês foram embora, afinal de contas, o meu instante definitvo, a minha chave conciliadora ainda não chegou. E mesmo que demore cinquenta mil anos, esquecido nessa motanha de quilômetros envoltos em estradas percorridas, eu vou me manter em pé, eu vou continuar sangrando. Agora, porque, é sempre assim, todo mundo tem o seu instante necessário, um medo que deve ser vencido, superado. Mas eu ainda não escolhi entre eles, eu ainda não senti o essencial. São os medos insuportáveis que me prendem no chão, que não permitem a minha mente imaginar as respostas para esses instantes, ou fazem ao contrário, me perdem pelo caminho, permitem-me escorregar pelas paredes, pelos chãos, sempre me fazendo fingir andar. Fingir pensar. Fingir que me completo com a situação. O negócio é combater o que não é visível, o medo não deve ser superado apenas pela vontade de descorir os instantes definitos, deve vir de dentro do corpo, escapar pelas mãos, pela pele e fabricar o próprio instante, aquele que a pessoa se descobre, se encontra, se mexe e vira outra coisa, com outra forma e capaz de sentir de novo jeito.

Obstáculo 10

O tempo. Chega dessas malditas horas, pentelhando meu ser, preciso de espaço e de vida para me acobertar. Ninguém vive de passagem, todos devem ser integrados ao ato de não perceber , porque realmente inexiste de opção contrária. Não é nada confuso se você tiver tempo de perceber, se tiver liberdade de escolher seus momentos, de cultivá-los, de fazê-los crescer. Não quero mais nada em troca de não ser quase nada. Quero ter a oportunidade de cometer tudo apenas e de assim, deixar de “não-ser” qualquer coisa a qualquer hora.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Ainda sem nome

É aquela sensação novamente, é necessário correr das coisas que andam me ofuscando, e que eu conheço bem, caso soubessem que eu posso me entender, que tenho certa consciência. O gorducho tinha que se ferrar mesmo. Nunca gostei dele. Sempre vigiando, batendo, jogando pedras, ameaçando-me, que raiva! Mas hoje eu me vinguei. E agora estou correndo feliz com o meu feito. Só não consigo acreditar que ele segue bem mo meu encalço, como uma poça de banha pode ter tanto fôlego? Por que não se dissolve nesse sol escaldante? Derrete e destrói todos esses seres idiotas a minha volta. O meu mundo é mais embaixo, onde eles não olham. E os raros que me enxergam só me dão afagos que não enchem o estômago. Todos voltam para suas casas felizes. Eu não quero só viver. Quero ser de madame e gastar do bom e do melhor. Esse mundo não é para mim. Acelero ainda mais minhas patas, pelo menos tenho quatro delas, posso tirar vantagem nesse terreno. Apesar de eu ser um cachorro e suar pela língua, não é a minha que está para fora: o balofo meio que se perde, não é só a sua boca que demonstra cansaço, todo o seu corpo parece estar ruindo, tropeçando, enfim, destruindo-se pelo calor. Vendo ele parado há alguns metros, de joelhos, e as mãos no chão, é como se eu o encontrasse no meu mundo. Estamos no mesmo plano agora, ele não me encara, baixa a cabeça, parecendo dizer que se entrega, está cansado demais para continuar correndo. E eu meio que paro. É necessário dar uma pausa, o maldito sol queima meus arredios pêlos brancos, pintando o meu manto canino de uma coloração queimada. Poucos momentos bons nessa vida irrequieta. E um deles foi ver a cara desse gordo ao morder a sua mão, o sabor da carne e o sangue escorrendo deram um ânimo a mais nessa tarde. Droga, não gosto de parar. Começo a refletir. E isso tem me feito mal. Só sei que não quero passar mais um segundo a me entregar para estranhos. Jamais. Esse sujeito, é só mais um de uma quantidade enorme de opressores, não pode continuar assim. A questão biológica fala mais alto, entre meus devaneios, me dá sede, muita mesmo, como se viesse de um golpe só, atravancando minha garganta e toda a minha circulação de pensamentos. A calçada está no fim, vejo do outro lado, uma poça gigante de água parada daquelas que se atiram do céu, acumulada. Não penso duas vezes, remexo-me novamente, atrás dela, contudo, na minha frente há aquele deserto cinza e tenebroso, onde máquinas gigantes brincam de correr. Quando era mais moleque até tentava alcança-las, mas nunca sequer as toquei. Desisti então, mas pelo restante da vida senti um temor, algo que me chamava muito a atenção nelas. Ao mesmo tempo em que observo o andar dos grandes gigantes de ferro, ouço a voz conhecida: era o gorducho novamente. Levanta-se parece revigorado, sórdido, inconseqüente, com um sorriso e várias raivas na mão. Ele se aproxima e salta ao meu encontro. E então eu não vejo mais nada, coloco-me no deserto, atrás da água e para longe dele, caso chegasse à outra margem estaria salvo. Mais por desejo e por medo que me atiro, não vejo máquina nem nada. Tudo que sofro é um forte impacto, que me joga a alguns metros de distância, não estou com mais sede, porém, sinto algo escorrer na minha boca, meio meloso, é certo, mas já me solidifica. Minha próxima visão é o barulho e sombras daqueles seres estranhos a minha volta. Sinto algo me segurando, e por fim, vejo-me alcançando a água. Está tudo deserto agora. E aquela poça é só minha. Bebo um pouco e descanso solitário. Nada mais ao meu redor.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Com uma pequena ajudinha dos meus inimigos

“E se eu disser que ela ainda mexe comigo?”, fala Tomas para Evandro, levando o copo vagabundo de cerveja à boca. Onze horas da noite de uma quinta feira, véspera de feriado. Os dois conversam sobre Helena. A trouxa da Helena. O amigo interpreta: “mexe em que sentido? fica brigando, ou brincando contigo, ou ainda te balança e te faz ficar enjoado, quando tu vê ela?” O movimento afirmativo da cabeça de Tomas denunciou que se tratava da segunda opção. Ou talvez tenham sido seus olhos intactos, vidrados nos de Evandro, que estremeceram, quando ele mencionou do enjôo, do balanço. Lembrou-se da sensação que Helena passava, como se o deixasse a bordo de um navio, que oscila, sempre tonto. Ficaram ali sentados, um de frente para o outro, as garrafas esvaziando-se, o álcool invadindo tudo. Evandro expulsa o silêncio, gritando: “eu já comi a Helena!”. O que se ouviu primeiro foi um barulho estranho, como se a quietude retornasse apenas por um segundo e depois fosse expulsa por um tornado. Os cacos de vidro das garrafas no chão nunca foram tão vermelhos cor de sangue vivo.

domingo, 19 de outubro de 2008

Pessoas

“O inferno são os outros” teria escrito Sartre, frase que foi reinterpretada, mantendo basicamente o mesmo significado no seriado “Seinfeld”. Foi Jerry, o protagonista da série americana mais famosa da década de noventa, que a disse, certa vez: “ Pessoas? Elas são as piores!”. Pode até ser verdade, essa afirmação caricata do personagem que representa toda o egocentrismo da década passada, mas será que as pessoas também não podem ser a salvação? Acredito que sim, mesmo que estejamos num tempo em que a crença é algo inerte e fadado ao esquecimento contínuo. De alguma forma ou outra perdemos a fé nas questões mais simples da humanidade. O inferno não está mais nos outros, está em todos os lugares, espalhado por nossa pele, dominando-nos totalmente. Talvez devêssemos expulsa-lo, usando de uma linguagem mais pura e nítida, clarificar as coisas até que surja tudo novo. Mas aí surge a preguiça, são tantos poréns, que tenho medo às vezes de não chegar a ser alguém por inteiro.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Parabéns

Não foi um encontro casual, já estava combinado, eles, enfim, se falariam pessoalmente. O céu já ensaiava uma pequena chuva: a camada de água serviria para cobrir os transeuntes. E, de certa forma, cobri-los também, enrolá-los em uma nuvem mútua de um sentimento que estava para nascer. Ônibus, Universidade, debate e mão, nessa ordem mesmo, as palavras e a conversa fluíam. Interessante ouvi-la, interessante ouvi-lo. Não estavam com receio, mas o sagrado momento da união interpessoal não chegava, parecia sempre beirar, estar preste a acontecer, como um navio que se desloca antes de enfim, aportar. E o instante chegaria perto da despedida:

- Por que você resolveu me conhecer afinal? - ela pergunta, meio que rindo, buscando a verdade nas entrelinhas.

- A gente tem que ir atrás do que nos interessa... – ele respondeu em meio tom, cabeça baixo, olhando e desviando dos seus olhos.

Então pequenos risos tímidos aconteceram, alguns ônibus que a levariam embora passaram, mas ela ainda ficava, como se esperasse o momento certo (mais tarde ela revelaria que era isso mesmo). Foi então que ao se despedir para pegar o transporte coletivo final, enquanto trocavam beijos no rosto, a boca foi se desviando e encaminhando-se como se seguisse uma trilha para o outro lábio. E então eles se chocaram, criando outras oportunidades, outros caminhos, outros mundos. E mesmo que chovesse pelos corpos, e mesmo que se o sol chocasse na terra, nada poderia parar aquela sensação.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Contato

Foi com receio que ele se aproximou da porta de madeira da casa velha. A mãe proporcionou a motivação: tirou - o do carro com uma força que ele, até então, não conhecia, falou boa sorte e entrou novamente. Ligou o motor e partiu, o menino só observou , pode ver o automóvel virando a esquina, o velho carro cinza que a mãe tanto cuidara. Ao dar a volta para encarar a porta, um estranho o esperava. Mascando um chiclete, ou qualquer outra coisa de goma, ele fechava e abria a mão, como se fosse trabalhar no campo, arando a terra. Encabulado, o rapaz foi ao seu encontro, segurando a mochila nas costas, com o espírito inquieto e punhos cerrados. Entrou em silêncio na casa, compartilhando – o com os móveis e o chão empoeirado. O velho ainda demorou alguns segundos, olhou pausadamente para os dois sentidos da rua, depois caminhou até a porta e a trancou. Ambos não sabiam o que dizer, talvez já fosse tarde - para qualquer contato, para qualquer aproximação. O menino se sentou e ficou lá esperando, percebendo toda a barreira que se instaurava entre as gerações. Sem saber o que falar, o velho trouxe uma foto, que achara em meio a desordem do seu quarto, da sua vida. Cuspiu o chiclete fora, se aproximou lentamente e esboçou as palavras:

-Sua mãe, quando criança tinha esses seus olhos...

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Crescendo (ou como eu queria que isso não acontecesse)

Comecei a notar a diferença em suas atitudes no momento em que ela deixou de abanar para mim da janela de vidro da cozinha, quando eu saía para a faculdade. A mão branca e pequena sempre pendia por trás da cortina que dividia o rosto em dois, os joelhos na cadeira para conseguir me enxergar. Aonde eles estavam agora? Ao chegar, já no final da tarde, ela também não me procurava mais: se ocupava agora com a tevê, ou com a nova maquiagem que a mãe tinha comprado. Com o tempo, os programas que ela assistia também mudaram, não eram mais tão infantis, onde estaria o Bob Esponja e o siri cascudo? Os seus gestos, antes tão meus, antes tão nossos, agora eram afastados sem querer, por um muro que o crescimento cria – a infância, infelizmente, não pode durar para sempre. Não consegui evitar certo ressentimento em não poder mais pega-la ao colo, ou leva-la na vó, “agora eu já sou grande, mano”. “Grande com nove anos”, penso eu e a seguro pela mão, quase que pedindo para levá-la e enfim, conseguindo conduzi-la até a casa da mãe do nosso pai.

É, o tempo passa Rafael, o tempo realmente voa.